FlatOut!
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Car Culture

Flat-4: a história dos Porsche com motores de quatro cilindros

No início dos anos 1990 a linha de modelos da Porsche estava envelhecida e ultrapassada. Seu 911 era basicamente um carro dos anos 1960 com visual modernizado e a alternativa a ele eram dois esportivos dos anos 1970 com motor dianteiro arrefecido a água — o 928 e o 968. A história começou a mudar em 1995, quando a Porsche decidiu (meio que à força) modernizar seu tradicional flat-6 e participar do revival dos roadsters que estava rolando na época.

O abandono do motor arrefecido a ar não seria fácil: os puristas viam no velho flat-6 aircooled a essência de um verdadeiro Porsche e, como se percebe pelo layout imutável do 911, a marca é muito ligada às suas tradições. Para resolver o problema eles decidiram buscar inspiração no passado, mais exatamente no 550 Spyder, seu roadster/speedster de corrida dos anos 1950, que era equipado com um motor flat-4 instalado na parte central-traseira do chassi. Com uma referência dessas, o impacto de usar um motor arrefecido a água não seria tão grande quanto o de um 911 com radiadores. Foi assim que o Porsche Boxster nasceu em 1996.

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Flash forward para 2016. A Porsche se tornou a fabricante mais lucrativa do planeta e produz até um SUV e um sedã de quatro portas. O Boxster ganhou um irmão de teto fixo chamado Cayman e se tornou um dos melhores esportivos que alguém pode comprar hoje em dia. Apesar do cenário ensolarado, a fábrica topou com um novo problema — o mesmo que a levou a adotar o arrefecimento líquido há duas décadas: níveis de emissões. Os governos querem forçar os carros a expelir ar filtrado com aroma de flores do campo em dia de chuva pelo escape, e ultimamente a solução mais recorrente tem sido o downsizing. O problema é que o downsizing do Boxster (e do Cayman) envolve a eliminação de dois dos seis cilindros de seu boxer, o que significa que o Boxster agora tem um motor quatro-cilindros turbo (veja nossa avaliação aqui).

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A solução para amenizar uma mudança tão impactante (afinal, você não esperava um Porsche de quatro cilindros em 2016, esperava?) novamente estava no passado, mais exatamente no clássico 718 RSK, do final dos anos 1950. Desta vez a inspiração foi o próprio nome do modelo, que agora batiza o 718 Boxster e o 718 Cayman. Além disso, o nome reforça a ligação com o passado de quatro cilindros da Porsche. Sim: não é algo que lembramos com frequência, mas a Porsche escreveu boa parte de sua história com motores boxer de quatro-cilindros  — o 718 é só mais um desses clássicos. Alguns foram vencedores nas pistas, outros tentaram se destacar nas ruas, e para conhecer melhor essa trajetória vamos relembrar os personagens desta história:

 

Porsche 356

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O primeiro Porsche com a marca Porsche era equipado com um boxer de quatro cilindros arrefecido a ar baseado no motor do Fusca, porém com novos cabeçotes, comandos, virabrequim e coletores de escape e admissão. A primeira versão do modelo, conhecida como Gmund (contamos a história deles aqui), usava motores de 1,1 a 1,5 litros com carburação dupla e potência de 40 a 70 cv.

Em 1955 veio a primeira modificação no modelo, que passou a ser conhecido como 356A e abandonou o motor 1100, passando a oferecer um 1300 de 44 cv na versão de entrada e um 1600 de 75 cv na versão mais potente (1600 S). No final daquele ano a Porsche passou a oferecer também o motor “Carrera” (Type 547/3) como opcional. Na versão 1600 GS Carrera De Luxe, esse motor produzia 105 cv e levava o 356 aos 200 km/h. Na versão 1500 Carrera Gran Turismo, o motor produzia 110 cv, mas “só” chegava aos 198 km/h.

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Na versão seguinte, a 356B, lançada em 1960, os motores 1300 e 1500 foram descontinuados e o Porsche passou a ser equipado apenas com um 1600 de comando simples ou um 2.0 de comando duplo no cabeçote. A potência era 60 cv no 1600, 75 cv no 1600 S, 90 cv no 1600 Super 90, e 130 cv no 2000 GS. Em 1963 a Porsche lançou a terceira variação do 356, a 356C, que foi transformada no modelo de entrada da marca e, por isso, voltou a usar apenas os motores 1600 com dois níveis de potência: 75 cv no 1600 C e 95 cv no 1600 SC.

 

Porsche 550

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Em 1951 a Porsche decidiu criar um carro projetado do zero para ser usado em corridas. O resultado foi o 550, que era inspirado no protótipo 356 Spyder, porém usava motor central-traseiro e tinha carroceria mais baixa que o irmão de rua. Durante os quatro anos em que foi produzido (de 1953 a 1957) o Porsche 550 usou apenas o motor 1500 Type 547/3, de quatro cilindros e comando duplo nos cabeçotes, com dois níveis de potência: os primeiros modelos 550 1500 RS tinham 110 cv a 7.800 rpm e levavam o speedster aos 210 km/h.

Mais tarde, no 550A 1500 RS de 1957, a taxa de compressão subiu de 9,5:1 para 9,81: e a potência para 135 cv a 7.200 rpm. Com ajuda do câmbio de cinco marchas, a velocidade máxima subiu para impressionantes 240 km/h.

 

Interlúdio: o motor 547/3

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Como você já deve ter percebido, o 550 nasceu do 356 e ambos viveram juntos os primeiros e difíceis anos da Porsche. Enquanto o 356 era um modelo de rua eventualmente usado para corridas, o 550 foi projetado desde o início para as pistas. Por isso também os primeiros desenvolvimentos tecnológicos da Porsche nasceram dele e depois se espalharam para o 356 e os modelos posteriores.

Entre esses desenvolvimentos estava o motor 547/3, um boxer com comando duplo que é considerado um dos motores mais complexos da Porsche. Sua história começou no início dos anos 1950, quando o motor 547 básico chegou ao seu limite de potencial e o diretor técnico da Porsche, Ernst Fürhmann, percebeu que estava na hora de fazer algo novo. Seu objetivo era chegar a 70 cv/l, número ainda desconhecido na época.

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Para isso, ele desenvolveu novos cabeçotes com câmaras de combustão hemisféricas e comando duplo de válvulas. A alimentação passou a ser feita por dois carburadores Weber 46IDA2 de corpo duplo e o resultado foi um motor 1.5 de 140 kg capaz de produzir de 113 cv a 182 cv dependendo de sua aplicação.

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O motor era caro e complicado de se fabricar e montar, mas, por outro lado, era muito robusto e durável e foi utilizado por 34 modelos diferentes da Porsche — do esportivo de rua 356 Carrera De Luxe ao 718 Monoposto de Fórmula 1.

 

Porsche 718 RSK

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Durante a temporada de 1957 a Porsche revelou o 718, o sucessor do 550. Com um novo chassi tubular tipo spaceframe ele tinha maior rigidez à torção e era ainda mais leve que o 550 — são 530 kg do 718 contra 550 kg d0 antecessor. Seus freios a disco foram revisados, assim como a suspensão e a carroceria, que ganhou um bico mais baixo e uma barbatana traseira para lidar melhor com o vento das altas velocidades.

O motor continuou na posição central-traseira e era o mesmo 547/3 de quatro cilindros, 1.500 cm³, quatro comandos de válvulas e duas configurações: 142 cv a 7.500 rpm e 148 cv a 8.000 rpm — ambas levavam o carro aos 260 km/h. Naquele ano o modelo disputou as 24 Horas de Le Mans de 1957, mas um acidente na 129ª volta o tirou da prova.

Em 1958 e 1959 a cilindrada foi aumentada para 1.600 cm³ e a potência chegou aos 160 cv a 7.800 rpm. Nestes dois anos o 718 RSK faturou o título europeu de subida de montanha, além de um terceiro lugar geral das 24 Horas de Le Mans e o segundo na Targa Florio de 1958, e o primeiro lugar na Targa Florio de 1959. O 718 ainda seria usado na Fórmula 1 em uma configuração monoposto com uma variação de 1.500 cm³ e 150 cv a 8.000 rpm do motor quatro-cilindros.

Em seus dois últimos anos (1962 e 1963), a versão spyder do 718 ganharia um oito-em-linha no lugar do quatro-cilindros, mas isso não significa que seu sucessor abandonaria o bom em velho Type 547/3.

 

Porsche Carrera GTS (ou 904, se preferir)

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Ainda em 1963 a Porsche desenvolveu o sucessor do 718. Desta vez o modelo não era um speedster, mas um cupê feito para disputar a categoria FIA-GT. Foi o primeiro Porsche a usar chassi tipo escada e carroceria de fibra de vidro, e também o último equipado com o motor Type 547/3 — que novamente foi instalado em posição central-traseira.

O 904 teve apenas duas versões com este motor, ambas com 2.000 cm³ de cilindrada. A primeira delas, de corrida, produzia 180 cv a 7.200 rpm e chegava aos 263 km/h. A segunda era uma versão de rua lançada para fins de homologação. O motor era o mesmo 2.0 porém com potência reduzida para 155 cv a 6.900 rpm, suficientes para levar o carro de 650 kg aos 250 km/h.

 

Porsche 912

Em 1964 a Porsche lançou aquele que se tornaria seu modelo mais icônico e popular, o 911. O problema é que, com um motor de seis cilindros, o modelo também era caro, e o 356 já não era tão interessante a quem quisesse um Porsche acessível. A marca então decidiu usar o próprio 911 para criar um substituto para o velho 356. Como? Tirando o flat-6 e colocando em seu lugar um motor flat-4 de 1.600 cm³ e 90 cv.

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Com essa configuração o 912 chegou a ser mais vendido que o próprio 911 e seu desempenho não era nada mau para os padrões da época. Com apenas 995 kg ele acelerava de zero a 100 km/h em 13,5 segundos e chegava à máxima de 185 km/h. A produção durou apenas até 1969. Quando o 911 se estabeleceu e suas vendas embalaram a Porsche decidiu investir em um outro projeto, o 914.

 

Porsche 914

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Desenvolvido em parceria com a Volkswagen, o Porsche 914 foi pensado para ser um sucessor para o 912 e, ao mesmo tempo, para o Karmann-Ghia. Por esse motivo o 914 usava o emblema das duas fabricantes — e também foi o primeiro Porsche a sofrer com o radicalismo dos fãs mais ardorosos, que não o consideravam um verdadeiro Porsche.

As críticas tinham algum fundamento: apesar de ter o emblema da Porsche na dianteira, no volante, nas rodas e na traseira (ao lado do VW circunscrito da Volkswagen), o 914 usava motores de quatro cilindros da irmã mais humilde. Com o layout central-traseiro, o 914 poderia ser equipado com um 1.7 de 80 cv a 4.900 rpm, um 1.8 de 85 cv a 5.000 rpm ou o 2.0 flat-4 de 100 cv a 5.000 rpm. Somente a versão 2.0 flat-6 usava um motor produzido pela Porsche.

O desempenho não era muito superior ao do 912: a versão 1.7 chegava aos 100 km/h em 13,3 segundos e parava nos 185 km/h. O 1.8 acelerava mais rápido, chegando aos 100 km/h em 12 segundos, mas tinha velocidade máxima de “apenas” 180 km/h. O 2.0, logicamente, era o mais rápido, chegando aos 100 km/h em 10 segundos e tocando os 190 km/h.

Em 1976 o 914 deixou de ser produzido para dar lugar ao 924, um modelo mais moderno, equipado com motor dianteiro arrefecido a líquido. Mas este é assunto para um outro capítulo da história.

 

Porsche 912E

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O último Porsche equipado com um motor flat-4 foi o 912E. Você talvez esteja achando estranho ele estar assim, separado do 912. É porque ele foi vendido somente em 1976 para “tapar o buraco” entre o fim da produção do 914 e o lançamento do 924. Seu motor era uma variação do 2.0 Volkswagen do 914 equipada com injeção Bosch L-Jetronic com 90 cv.