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Car Culture

As Flechas de Prata da Mercedes-Benz: decolando em Le Mans e dominando a Fórmula 1

Depois de causar acidentalmente a morte de 84 pessoas na edição de 1955 das 24 Horas de Le Mans, a Mercedes retirou-se do automobilismo, reservando o tempo de seus engenheiros para projetar sedãs de luxo e limousines para os homens mais poderosos do mundo.

A fábrica só voltaria a ter uma equipe em competições oficiais depois de quase 35 anos, quando firmou uma parceria com a Sauber para disputar o World Sportscar Championship (WSC, um ancestral do atual WEC) em 1989. O retorno foi gradual, começou em 1985 somente como fornecedora de motores para os modelos C8 e C9 da equipe de Peter Sauber. Os carros não foram muito bem sucedidos incialmente — o C8 sequer largou nas 24 Horas de Le Mans de 1985, e não terminou a prova de 1986.

No ano seguinte, a Sauber estreou um novo carro, com um novo motor Mercedes, o V8 M119, um dos mais robustos da história da marca e mais moderno que o anterior M117, com comando de válvulas quádruplo e cabeçotes de alumínio. No primeiro ano o carro não terminou as 24 Horas de Le Mans mais uma vez, e ficou com um distante 12º lugar no WSC. Com a sequência de insucessos a Sauber encerrou a parceria com o patrocinador Yves Saint-Laurent (dono da marca Kouros Racing).

 

A volta da equipe oficial de fábrica

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Em 1988 a Mercedes-Benz aumentou seu envolvimento com a equipe, inscrevendo-a como equipe de fábrica no campeonato adotando o nome Sauber-Mercedes. Ainda usando o C9, agora com uma clássica pintura prateada, como os antigos Silberpfeilen, a equipe faturou cinco corridas, mas acabou o campeonato em segundo lugar, atrás da TWR Jaguar.

Contudo, em 1989 a Sauber-Mercedes virou o jogo e venceu sete das oito corridas do calendário daquele ano, faturando o título. Em Le Mans, a equipe conseguiu uma dobradinha com Jochen Mass, Manuel Reuter e Stanley Dickens vencendo a prova no carro #63 e Mauro Baldi, Kenny Acheson e Gianfranco Brancatelli chegando em segundo lugar no carro #61. 

Na temporada de 1990 o C9 foi substituído pelo C11 e a equipe foi rebatizada como Mercedes-Benz, embora toda a estrutura e pessoa ainda fosse da Sauber. O carro era uma evolução do C9, que ainda era competitivo, mas temendo a evolução da concorrência, a Mercedes decidiu refinar a aerodinâmica do carro e dar um tapa no motor para extrair 720 cv dos oito cilindros em V.

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A equipe dominou a temporada novamente. Venceu oito corridas das nove do calendário, sagrou-se campeã mundial pela segunda vez e revelou ao mundo um jovem alemão nas três últimas corridas da temporada: Michael Schumacher, de 21 anos.

Para 1991, a Mercedes desenvolveu um projeto totalmente novo, o C291. Ele era movido por um flat-12 de 650 cv — potência reduzida para atender o novo regulamento, e tinha o design um tanto ultrapassado. Com ele a equipe não conseguiu nenhuma vitória, o que levou a Sauber-Mercedes a inscrever o bom e velho C11 para disputar as 24 Horas de Le Mans.

Com Schumacher, Karl Wendlinger e Fritz Kreuzpointner como pilotos o carro era um dos favoritos para a vitória. Eles andaram na frente nas primeiras horas da corrida, mas ao sair de um pit stop, Wendlinger rodou por causa dos pneus frios, talvez e acertou o muro. O carro foi consertado e conseguiu voltar à corrida. Com uma performance brilhante de Schumacher a equipe ainda conseguiu terminar em quinto. A vitória ficou com um japinha excêntrico (de verdade): o Mazda 787B. No final da temporada frustrante, a Mercedes acabou abandonando as corridas de protótipos.

De volta à Fórmula 1… mas apenas com motores

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A Mercedes abandonou o WSC, mas não as pistas. Os alemães tinham um plano para voltar à Fórmula 1 em parceria com a mesma Sauber dos esporte protótipos, mas o plano acabou engavetado. Mesmo assim, Peter Sauber e companhia ingressaram na Fórmula 1 em 1993 com o C12, que usava um motor V10 Ilmor, desenvolvido em parceria com a Mercedes-Benz. O carro não terminou nenhuma corrida da temporada devido a falhas mecânicas e por isso na temporada seguinte o novo carro, C13, passou a usar um V10 feito pela própria Mercedes.

O novo motor deu mais fôlego ao carro, que conseguiu marcar 12 pontos na temporada e colocou a Sauber em oitavo lugar no mundial de construtores, mas ainda assim abandonou mais corridas do que completou. No fim do ano a Mercedes encerrou a parceria com a equipe suíça, com novos planos para a temporada seguinte.

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Em 1995 a marca anunciou uma parceria para o fornecimento de motores para ninguém menos que a McLaren. As vitórias vieram aos poucos. Em 1995 foram dois segundos lugares, em 1996 nenhuma vitória de novo, mas a equipe chegou seis vezes ao pódio com Mika Hakkinen e David Coulthard. Em 1997 a dupla foi sete vezes ao pódio, com três vitórias e estreou a pintura prata do novo patrocinador, fabricantes de cigarros West.

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A cor que consagrou os Mercedes parece ter dado sorte à McLaren. Em 1998, Adrian Newey acertou a mão no MP4/13 e a dupla de pilotos correspondeu na pista. A McLaren faturou o título de pilotos com Mika Häkkinen e o título de construtores, o primeiro depois de sete anos, com uma vantagem de 23 pontos à frente da Ferrari. O finlandês repetiu a conquista em 1999, mas a equipe não conseguiu manter o título de construtores, que foi para a Ferrari por apenas quatro pontos.

 

Sorte no Mundial, azar em Le Mans

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Quando a FIA criou o GT Championship em 1997 a Mercedes decidiu tentar o título de protótipos mais uma vez com o CLK GTR. Apesar do nome do cupê de médio porte da marca, ele era um protótipo com chassi próprio e motor V12 de seis litros e 600 cv, e usava apenas alguns elementos estéticos do CLK de rua, como as lanternas, faróis, grade dianteira, painel de instrumentos e volante. O carro estreou mal no novo campeonato, mas ao longo da temporada conseguiu evoluir e faturou seis das 11 corridas (as outras cinco foram vencidas pela BMW) que lhe renderam o título do mundial de GT de 1997.

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No ano seguinte o CLK GTR voltou a dominar o Mundial de GT, vencendo todas as dez corridas da temporada e conquistando o segundo título para a fabricante.

Com um carro assim competitivo, a Mercedes tentou Le Mans mais uma vez em 1998. Eles até mudaram o motor do CLK GTR, substituindo o novo V12 pelo robusto M119, o mesmo que venceu a corrida francesa no cofre do Sauber C9, com cinco litros de deslocamento e 600 cv. Contudo, os dois carros não passaram das primeiras horas, abandonando a corrida com menos de 40 voltas.

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Em 1999 a Mercedes desenvolveu uma evolução do carro chamada CLR, que usava um motor V8 exclusivo de corridas, com 5,7 litros de deslocamento e 600 cv para seus 921 kg. A Mercedes inscreveu três carros na prova, que foi uma das edições mais disputadas das 24 Horas de Le Mans, com os grandes fabricantes participando com três ou até quatro carros.

Mas o que parecia uma chance para conquistar Le Mans pela terceira vez transformou-se em um dos maiores fiascos da história da marca. O CLR tinha uma falha aerodinâmica de projeto, que permitia que um grande volume de ar se concentrasse sob o bico do carro, especialmente ao seguir outro e em aclives como a entrada da Indianápolis e a reta Mulsanne.

Com essa falha, o CLR de Mark Webber decolou na Indianápolis durante a classificação. O carro foi consertado e os três se classificaram, contudo, Webber decolou novamente na corrida, logo após um bump na Mulsanne, aterrissando sobre o teto do carro, que seguiu arrastando-se até a curva de mesmo nome. Os outros dois CLR continuaram na corrida depois de passar por modificações de emergência para reduzir a instabilidade aerodinâmica.

Não funcionou. Algumas horas mais tarde, o CLR de Peter Dumbreck também decolou na entrada da Indianápolis, que é um setor bastante irregular, e acabou aterrissando nas árvores ao lado da pista. Pior: desta vez o incidente foi capturado pelas câmeras de TV, que transmitiram o acidente para todo o mundo (acima). A Mercedes-Benz retirou o terceiro carro da competição e abandonou as corridas de protótipos. Felizmente, desta vez ninguém se machucou como em 1955.

 

Da Fórmula 1 para as ruas como em 1955 — ou quase isso

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A parceria vitoriosa com a McLaren levou as duas empresas ao desenvolvimento de um supercarro de rua usando o know-how adquirido nas pistas. Ele não era exatamente um F1 para as ruas como o Ulenhaut Coupé, mas tinha recursos oriundos da F1 como o uso extensivo de fibra de carbono e a aerodinâmica ativa.

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O motor era um V8 de 5.5 litros sobrealimentado por compressor, como um bom Silver Arrow, e produzia 626 cv para levar o esportivo a 100 km/h em 3,4 segundos e além dos 380 km/h.

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A inspiração nos Silver Arrows da década de 1950 não parou na relação íntima com a F1. Houve ainda uma versão especial em forma de Speedster limitada em 75 unidades batizada “Stirling Moss”. Com 1.300 kg e 680 cv, ela foi inspirada no 300SLR usado pelo lendário piloto britânico na Mille Miglia de 1955.

 

De volta à Fórmula 1… agora oficialmente como equipe de fábrica

Em 2009, Ross Brawn transformou o que restou da equipe oficial da Honda na F1 em sua Brawn GP, mas em vez de usar o powertrain japonês, o projetista/dono da equipe optou pelos motores Mercedes. Ao descobrir uma brecha no regulamento que permitiu um novo tipo de difusor duplo, Brawn dominou a primeira metade da temporada com seis vitórias de Jenson Button e outras duas de Barrichello, suficientes para dar o título de pilotos ao inglês e o de construtores à equipe novata, que se tornou a segunda campeã mundial de F1 com os motores alemães, depois da McLaren.

Com o sucesso da estreante, a Mercedes decidiu romper a parceria com a McLaren e comprou 75 % da equipe de Ross Brawn no final de 2009, transformando-a na Mercedes GP e marcando a volta da fabricante à categoria depois de 55 anos.

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Assim como nos anos 1950, a Mercedes investiu no maior nome de sua geração e em um novato promissor: Michael Schumacher e Nico Rosberg foram os pilotos escolhidos. Mas diferentemente de 1954, os resultados não vieram logo nas primeiras corridas. Com um regulamento mais limitado, a equipe precisou de tempo para desenvolver soluções que fizessem a diferença na pista. Foram três pódios na primeira temporada, de 2010 e depois um ano inteiro sem resultados expressivos antes da primeira vitória em 2012, conquistada por Nico Rosberg no GP da China.

Em 2013 Schumacher se aposentou pela segunda vez e Lewis Hamilton foi contratado para seu lugar. Os pódios tornaram-se mais frequentes — foram quatro de Nico e cinco de Lewis — assim como as vitórias (duas de Nico e uma de Lewis), mas ainda não foram suficiente para derrotar a toda poderosa Red Bull, o grande nome deste início de década na Fórmula 1.

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Então, em 2014, com o novo regulamento a Mercedes acertou a mão na aerodinâmica e na forma de construção do novo powertrain híbrido com motor V6 turbo e sistemas de recuperação de energia, e iniciou um novo domínio das Flechas de Prata na Fórmula 1. Foram oito pole positions e oito vitórias em nove corridas disputadas até agora, e a equipe só não conquistou dobradinhas nas corridas em que um dos pilotos abandonou por acidente.

Isso tudo nos leva de volta ao começo dessa história, na década de 1930, quando Auto Union e Mercedes-Benz dominavam as pistas. A Audi é o grande nome do endurance atual, enquanto a Mercedes projeta um domínio na Fórmula 1. Será que estamos vendo a história ser (re)escrita? Ou será apenas uma questão de tempo até a concorrência reagir?