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Como o motor Peugeot-Renault-Volvo do DeLorean foi parar no Alfa Romeo 155 DTM?

Se você estivesse numa roda de amigos e alguém perguntasse o que um DeLorean e uma Alfa Romeo 155 DTM têm em comum, você muito provavelmente diria: “nada”. Ou talvez sendo um pouco mais gaiato diria que ambos possuem quatro rodas e um volante. Porque fora esse tipo de resposta é praticamente impossível achar algo que una os dois carros. 

Pois vos digo: estes dois carros têm algo em comum. E é difícil acreditar: o motor! Graças a algumas reviravoltas, negociações, inimigos virando aliados, um engenheiro brilhante e uma quantidade impensável de interpretações de regulamentos de campeonatos nacionais de Turismo levaram a essa história que, de tão inusitada chega a ser incrível.

Mas para contar como isso aconteceu, é necessário voltar no tempo para recapitular alguns pedaços da história automotiva.

 

Primeiro elemento: A Lancia

A Lancia & C. Fabbrica Automobili foi fundada em Turim pelos amigos e ex-pilotos de corridas da Fiat Vincenzo Lancia e Claudio Fogolini em 29 de novembro de 1906. Desde seu início fabricou carros de luxo e de corridas, sendo inovadora e contando com várias primazias na indústria automotiva, dentre elas a estrutura monobloco, os motores V4 e V6, suspensão independente e o chamado hoje de coilover, estrutura onde o amortecedor e a mola helicoidal são montados juntos, em uma única estrutura.

Desde então a empresa sempre se alternou entre altos e baixos tanto de seu departamento financeiro quanto de corridas. Porém, em 1969 a situação chegou a um ponto insustentável. Com vendas em baixa e custos altos na fabricação dos veículos, a empresa estava à beira do colapso financeiro. A Fiat, aproveitando deste momento, fez uma proposta de aquisição da marca que foi prontamente aceita. O primeiro carro lançado após essa absorção fora o lendário Lancia Stratos em 1972 como modelo 1973.

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Durante as décadas seguintes a Lancia retomou o crescimento, focando em carros esportivos e nas corridas e ralis, onde obteve um sucesso invejável. Em 1984 a empresa retomou a produção de um carro de luxo: o Lancia Thema, sedã de grande porte desenhado por Giugiaro que dividia a plataforma Tipo Quattro com o Fiat Croma, Alfa Romeo 164 e Saab 9000. Ao longo de seus dez anos de vida ele utilizou vários motores Fiat e Ferrari, sendo o 2.9 V8 da Ferrari 308 e Mondial mais lembrado. Porém, neste momento é importante relembrarmos de um motor meio esquecido que acabou parando dentro do cofre deste carro, entre 1984 e 1992: o infame 2.9 V6 PRV. 

V6 PRV-1

Mas como esse motor foi parar no cofre de um carro do grupo Fiat, afinal? A Fiat possuía em suas prateleiras um motor 2.5 turbo diesel que interessava aos franceses. Então, as empresas fizeram uma permuta de motores: enquanto a Renault e Peugeot utilizaram a unidade italiana em alguns de seus carros e utilitários leves, em troca a Fiat pôde usar o PRV no Thema. A partir de 1992, a Lancia passou a usar o V6 Busso da Alfa Romeo, e mais abaixo tem a explicação para isso.

 

Segundo elemento: O motor PRV

Visando cortar custos, Peugeot e Renault assinaram, em 1966, um acordo de cooperação para produção de componentes que pudessem ser utilizados pelas duas marcas. Como resultado, foi criada a Compagnie Française de Mécanique ou FM para o desenvolvimento e fabricação dessas peças, notadamente trens de força.

Em 1971 a Volvo se associou à FM. No acordo foi decidido que cada um dos fabricantes deteria um terço da FM e assim nasceu a PRV (Peugeot-Renault-Volvo). Os planos originais da PRV eram de criar um motor V8 a ser compartilhado entre as empresas e vendido a quem mais desejasse utilizá-lo, porém, com a crise do petróleo de 1973 eles acabaram por mudar os planos e entregar um V6, mais econômico que o motor inicialmente planejado. 

Por isso o PRV é um V6 em configuração não usual, já que, por ser um V8 com dois cilindros a menos, o ângulo entre suas bancadas é de 90o e em suas primeiras versões a ordem de ignição era assimétrica, com grupos de cilindros tendo ignição entre eles em um intervalo de 90o e outros a 150o de rotação do virabrequim. Parece meio confuso, mas é fácil de entender. No caso do PRV de 1a geração, cuja ordem de ignição era 1-6-3-5-2-4, os pares formados entre os cilindros 1 e 6, 3 e 5 e 2 e 4 queimarão a 90o entre si; o cilindro 3 iniciará queima 150o após o cilindro 6 e o cilindro 2, 150o após o cilindro 5; Mais ou menos assim: 1-90º, 6-150º, 3-90º5-150º2-90º, 4-150o.

Algo similar pode ser observado nos motores 4.3 Chevrolet que vieram nas S10/Blazer dos anos 90, já que esse motor também é derivado de um V8 (o onipresente small block chevy) e possui ângulo de 90oentre as bancadas. Uma das maneiras de corrigir essa distorção é utilizar um virabrequim com 30o entre os moentes dos cilindros, conforme figura abaixo. 

virabrequim

O ângulo ideal entre as bancadas de um motor V6 deve ser de 60o e o virabrequim possuir moentes dispostos a 60o entre si (configuração do V6 Busso das Alfa Romeo), conforme a figura acima, para que a ordem de ignição seja simétrica e se evitem vibrações indesejáveis.

Em sua vida útil, o PRV sempre foi conhecido por ser um motor com pouca potência, consumo ruim e não confiável em suas versões atmosféricas, seja com 2 ou 4 válvulas por cilindro. As versões turbo tinham potência, consumo razoável pela potência gerada, mas a confiabilidade ainda foi um problema.

 

Terceiro elemento: A Alfa Romeo

Fundada em 1910 em Milão, a Società Anonima Lombarda Fabbrica Automobili (A.L.F.A.) foi criada como parte de uma mudança na Società Anonima Italiana Darracq, fabricante de carros fundada em 1906 por Alexandre Darracq com apoio de investidores italianos. Em 1915 um italiano chamado Nicola Romeo passou a ser o Diretor-Presidente da empresa, e, por conta dos esforços de guerra durante a Primeira Guerra Mundial, acabou convertendo a outrora fábrica de automóveis para fábrica de artefatos bélicos. Em 1920, a empresa passou a se chamar Alfa Romeo e lançou seu primeiro carro com esta nova marca, o Torpedo 20-30 HP.

Desde então, a marca, por meio de sua famosa Squadra Corse sempre esteve engajada no automobilismo, seja em corridas de Turismo como em Monopostos, logrando êxito em muitas categorias, até mesmo na Fórmula 1 em seus primórdios. A Alfa Romeo era tão boa que chegou a revelar, nos anos 20, um certo piloto, depois promovido a chefe de equipe chamado Enzo Ferrari.

Porém, nos anos 80, o Cuore Sportivo batia fraco, fraco. Com uma linha pobre em design, defasada e que não oferecia os atrativos de desempenho dos bem-sucedidos modelos dos anos 60 e 70, a marca estava à beira da insolvência. Numa disputa com a Ford, a Fiat acabou adquirindo a totalidade das ações da marca.

Na época, a decisão do corpo diretor foi de fundir a marca com a arquirrival Lancia (já parte do grupo), formando assim a Alfa Lancia Industriale S.p.A.. Portanto, para fins legais, as duas empresas passaram a ser uma só e passaram a dividir plataformas e componentes com a Fiat. Após essa fusão, dois modelos foram lançados quase de imediato: 164, em 1987 (nascido da plataforma Tipo Quattro) e o SZ/RZ, o canto do cisne da plataforma do Alfa Romeo 75. Tal fusão durou apenas alguns anos e foi desfeita no início dos anos 90.

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Portanto, para o fim dos anos 80, a marca de Milão precisava de um novo sedã médio. Assim, começaram os esforços para projetar o que hoje conhecemos como Alfa Romeo 155. Partindo da plataforma Tipo Tre, também compartilhada com o Fiat Tempra e o Lancia Dedra, foi projetado um sedã médio para cobrir essa lacuna, onde a marca havia estabelecido uma notável tradição nos anos 60 com a Giulia Berlina.

Decidiram, também, por utilizar este carro como nau capitânia da retomada da Squadra Corse como parte dos planos de reerguer a marca. Para isso, decidiram entrar no Superturismo italiano e na DTM, que naquele período era o campeonato de Turismo mais popular do mundo, arrastando multidões para os autódromos e sendo televisionada para vários países. Até mesmo aqui no Brasil, na extinta Rede Manchete, tivemos o privilégio de acompanhar algumas temporadas sendo narrada e comentada pelo inenarrável e incomentável Edgard Mello Filho, provavelmente o narrador mais Alfisti de todos os tempos.

Sério, se você nunca viu o Edgard narrando DTM e como era uma corrida em Hockenheim você PRECISA ver esse vídeo

Ele tinha uma estranha obsessão por limpadores de pára-brisa

Na empreitada inicial, o resultado veio já em 1992, com a vitória na temporada do Superturismo Italiano. Isso estimulou a marca a se lançar em outros campeonatos, como o BTCC. Porém, o maior desafio foi o de montar um carro competitivo para o DTM, onde o regulamento era bem mais permissivo. 

V6 Busso-4

No DTM, a regra para motores dizia que a usina deveria ter algumas características em comum com a sua contraparte de rua. O ponto de partida natural foi o motor V6 Busso e a Abarth foi encarregada de prepará-lo para as pistas, já que a companhia fundada por Carlo Abarth era parte do grupo desde 1971. As restrições para 1993 eram as seguintes:

– O motor deveria ter sido lançado em algum carro de rua da marca, mas não necessariamente no modelo a ser utilizado;

– O bloco do motor não precisava ser exatamente o mesmo, mas precisava manter as seguintes características:

– O material do bloco de pista deveria ser o mesmo do de rua;
– O ângulo entre as bancadas de cilindros deveria ser mantido (para o caso de motores em V);
– A distância centro-a-centro dos cilindros deveria ser a mesma;
– O deslocamento máximo deveria ser de 2,5 litros;
– O limite de rotações era de 12.000 rpm.

Fora isso, absolutamente tudo poderia ser retrabalhado. Na prática, o desenvolvimento desses motores só encontrou paralelo na Fórmula 1. Titânio, nikasil, inconel e outros materiais exóticos eram encontrados aos borbotões em todos os motores da categoria. Com a Alfa Romeo não foi diferente, e o desenvolvimento foi feito da seguinte maneira:

– Partindo de um motor Busso 3.0 (93 mm de diâmetro), foi confeccionado um novo bloco de alumínio com camisas em nikasil;
– Foi usinado um novo virabrequim com 61,3 mm de curso, para diminuir a cilindrada para 2,5 litros e permitir que o motor alcançasse maiores rotações;
– Novos coletores de escape e admissão foram projetados, sendo o de admissão com borboletas individuais;
– Os cabeçotes, assim como os comandos de válvulas, foram projetados do zero para o melhor fluxo possível e ganharam válvulas de titânio na admissão e inconel no escape;
– A lubrificação passou a ser por cárter seco;
– O motor recebeu uma central com processador similar aos usados na F1.

O resultado disso foram impressionantes 420 cv a 9.000 rpm e 30 kgfm a 1.800 rpm.

Isso foi suficiente para as temporadas de 93, 94 e 95. Durante esse período o motor recebeu algumas melhorias, como fechamento pneumático das válvulas, porém, com ele já não era possível acompanhar o ritmo das Mercedes-Benz, que possuíam usinas com mais potência.

É aí onde Sergio Limone, engenheiro responsável pelo carro, se aproveita de uma brecha para desenvolver um novo motor. O ângulo de 60o entre as bancadas atrapalhava o desenvolvimento de uma admissão mais favorável para as potências almejadas, além disso, caíra o limite de rotações para a temporada de 1996, portanto, precisavam de um bloco com maior distância centro-a-centro dos cilindros para expandir o diâmetro e, com isso, permitir um virabrequim com ainda menos curso e capaz de rotações mais altas.

Ele, como um bom engenheiro de carros de corridas, tinha uma experiência de décadas em leitura e interpretação de regulamentos. Para resolver o problema, ele adotou o V6 PRV do Lancia Thema como base, que possuía maior distância centro-a-centro e 90o entre as bancadas de cilindros. O regulamento deixava claro que o motor precisava ter sido utilizado em um carro de rua, mas não fala nada a respeito de quando esse motor estava em linha e sobre fusões e aquisições da indústria automotiva. Como a Alfa Romeo e a Lancia foram, para efeitos legais, a mesma empresa por um período, o PRV pôde ser utilizado. Tacada de mestre de um dos maiores engenheiros de carros de corrida da história!

V6 90-3

Assim prosseguiram com o desenvolvimento do novo motor seguindo as mesmas premissas do antigo: novo bloco com diâmetro x curso de 98 mm x 55,2 mm; controle pneumático total das válvulas de admissão e escape; cabeçote e comandos para girar além das 12 mil rpm; materiais exóticos em profusão. Como resultado, nada menos que 490 cv a 12 mil rpm e 31,5 m.kgf a 9000 rpm.

Mas quem conta melhor essa história é o próprio Sergio Limone. O inginiere concedeu esta entrevista em 8 de abril deste ano e o vídeo, para quem gosta de estórias de corrida é uma preciosidade! Ele fala o tempo todo em italiano, mas Davide Cironi, o jornalista dono do canal, teve a bondade de inserir legendas em inglês, que podem ser programadas dentro do Youtube para serem traduzidas simultaneamente. A parte que contei aqui se encontra nos primeiros minutos do vídeo, mas se aceitam minha sugestão, assistam até o fim!

Obviamente a alta direção do grupo Fiat não gostou nada de saber que usaram um motor PRV em uma Alfa Romeo, mas por fim acabaram concordando com o projeto. Porém, na revelação do carro, foi divulgado pelo departamento de marketing que o motor, na verdade, era baseado no V8 da Alfa Romeo Montreal sem dois dos cilindros. Mas como o próprio Sergio Limone fala, claramente era visível que se tratava do PRV.

V8 Montreal-1Alfa Romeo 155 DTM ITC © 2014 Track|FEVER.eu - Photo: BigSte Photography

Ok, você nesse ponto pode pensar que o motor apenas guardava leve semelhança com o PRV original, não era nem de longe um motor de rua preparado. Mas não fosse a versão de rua, esse motor fantástico nunca teria nascido. E com a devida licença poética, dá para dizer que a Alfa Romeo correu com um motor de DeLorean no DTM! Ou um motor francês, se você for mais gaiato!

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