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Técnica

Como o novo Honda NSX pode causar a próxima revolução em dinâmica automotiva

No momento da revelação, foi impossível de se aproximar do estande da Acura no Salão de Detroit: só pude chegar perto da versão final do novo Honda NSX horas mais tarde. Foram sete anos de expectativas, duas mudanças na configuração do motor, ao menos dois conceitos diferentes e inúmeras especulações a respeito da nova geração do New Sportscar eXperimental – e, mesmo após sua exibição, a maior parte das dúvidas permanece no ar.

Nesta avant premiere de 12 de janeiro, pouco foi revelado a respeito da ficha técnica do NSX, que irá para as ruas ainda este ano. Sabe-se que ele terá estrutura de aço de alta resistência, alumínio e fibra de carbono, carroceria de alumínio e compósitos, câmbio de dupla embreagem de nove (!) marchas, tração integral, e motor V6 biturbo central-traseiro combinado a mais três motores elétricos: um na traseira e dois independentes na dianteira, um para cada roda.

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Mas o final do parágrafo acima revela uma ponta de um iceberg que pode fazer do NSX a revolução próxima revolução em dinâmica automotiva, causando impacto desconcertante similar ao que o Nissan GT-R causou no universo dos superesportivos. Ninguém parece ter se atentado a isso – e a Honda, low profile como sempre foi, também não fez questão de fazer barulho antes da hora. E pode ter mais carne neste caldo.

Para entendermos as possibilidades destes quatro motores e o que mais o Honda poderá trazer no NSX, vamos precisar voltar alguns anos na história e nos sujar um pouco de cascalho. Acelere com a gente.

 

A arte do torque vectoring e o rali

Você já deve ter visto a capacidade impressionante de manobra daqueles pequenos tratores, os famosos Bobcat (note aos 30s do vídeo acima). Sim, eles possuem entre-eixos minimamente curtos e esterçam as quatro rodas. Mas para girar em torno de si, o Bobcat faz uso de outro recurso: o skid steer, que basicamente o faz aplicar torque oposto nas rodas do lado direito em relação ao esquerdo (e vice-versa). Isso causa um torque de rotação no veículo tão forte que suas rodas sequer precisam esterçar – tanto que há outros tratores similares que não esterçam, e apenas usam o skid steer para mudar de direção.

Agora, assista Ken Block fazer uma série de zerinhos em torno do próprio eixo nos primeiros 20 segundos do vídeo acima. O princípio e as necessidades são os mesmos do Bobcat: diferença de torque entre as rodas e necessidade de girar em torno do próprio eixo. Os carros do WRC competem quase sempre em condições extremamente limitadas de aderência (gelo, neve, cascalho, barro), nas quais o poder do volante em efetivamente mudar o veículo de direção em velocidade fica bastante limitado. Para piorar, as estradas são sempre apertadas, limitando o espaço de trabalho a quase nada. Sim, os pilotos do WRC tangenciam todas as curvas, mas a verdade é que, para fazer a mágica surreal que eles fazem, só mesmo girando o carro em torno do próprio eixo.

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Como os carros do WRC fazem isso? Momentaneamente transferindo o máximo do torque para a roda traseira externa à curva e liberando o quanto possível as outras (em grampos como o da foto acima, uma ajudinha do freio de mão também é essencial). Esta diferença de torque transferido ao asfalto faz o veículo mudar de direção, estimulando-o a girar em torno do próprio eixo: vetorização de torque. Por imposição de regulamento, desde 2006 os carros do WRC fazem isso com sistemas puramente mecânicos, seja por engrenagens (Torsen) ou por discos de fricção, sensitivos ao torque do motor e à diferença de velocidade entre as rodas.

Mas antes entre os anos 90 e 2006 é que estava o espetáculo: os sistemas ativos, capazes de aumentar ou reduzir o bloqueio a qualquer momento (pelo aumento ou redução da pressão hidráulica no circuito dos diferenciais, aumentando ou reduzindo o acoplamento dos discos de fricção), tanto entre os eixos dianteiro e traseiro quanto entre os lados, multiplicando a capacidade e o controle do torque vectoring e, claro, a capacidade de tracionamento nas saídas de curva. Afinal, imediatamente depois de fazê-lo apontar, é preciso voltar a despejar torque também nas rodas da frente para que o carro deslanche com o máximo de velocidade. Os sistemas ativos usam uma montanha de dados – acelerômetros, sensores de velocidade de cada uma das rodas, de posição do acelerador, de pressão dos freios, marcha utilizada, ângulo do volante, ângulo relativo do veículo –, que alimentam uma série de mapeamentos feitos pela engenharia. O piloto escolhia estes mapeamentos personalizados on board, durante a pilotagem!

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Várias marcas estudaram a fundo os sistemas ativos de diferencial, mas foi a Mitsubishi, na década de 1990, que levou o seu desenvolvimento ao extremo durante os anos do WRC, o que culminou no tetracampeonato de Tommi Makinen (1996, 1997, 1998 e 1999).

Cerca de uma década depois, em 2007, o ocidente conheceu um dos supercarros mais monstruosos: o Nissan GT-R. Como vocês viram na série “Os segredos do desempenho absurdo do Nissan GT-R” (parte 1 e parte 2), um dos grandes pulos do gato foi a forma como ele combinou o funcionamento dos sistemas de diferencial com o uso independente das pinças de freio (note: dois torques opostos, mesmo princípio do skid steer do Bobcat), orientados pelos mesmos sensores e acelerômetros: desta forma, o Godzilla consegue produzir um torque vectoring muito superior ao que se fazia na época. Apesar de ter mais de 1.700 kg, o GT-R conseguia ter uma agressividade nas entradas de curva que soava como mágica.

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O segredo não durou muito e começou a ser utilizado em todo tipo de veículo, incluindo os de tração dianteira e traseira. Por volta de 2010, quase todos os fabricantes apresentaram as suas versões – incluindo o Porsche Torque Vectoring, demonstrado na imagem abaixo.

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O princípio é simples: o torque aplicado no freio traseiro interno à curva (1) faz com que o torque do motor seja transferido automaticamente para a roda de fora (2), o que causa um efeito de rotação no veículo (3). Com o torque vectoring, o veículo é puxado para dentro da curva, mantendo a trajetória planejada (linha amarela) e prevenindo o subesterço (linha cinza). Por isso, ele é tanto um recurso de performance quanto de segurança. Como se trata de algo controlado eletronicamente, é possível de se usar vários mapeamentos em um mesmo veículo.

Mas o conceito de torque vectoring estava para ser explorado em um novo paradigma: o SLS Electric Drive, de 2013, que apelidei de “AV-8 Harrier” dos automóveis. Este veículo conceitual da Mercedes-Benz tem quatro motores elétricos de 187 cv e 25,4 mkgf, um em cada roda, totalizando mais de 750 cv e 100 mkgf. A segunda parte da frase anterior é interessante em linha reta, a primeira parte é desconcertante nas curvas. Com o torque instantâneo dos motores elétricos somado à total independência de funcionamento e à possibilidade de se gerar “torque negativo” quando conveniente, o SLS Electric Drive levou o torque vectoring a um limite nunca antes visto. Tive o privilégio de pilotar este carro no autódromo de Paul Ricard, na França. A forma como ele era puxado para dentro das curvas, em momentos em que você imaginaria ter perdido a dianteira e até se prepararia para o subesterço, era nada menos que bestial. Detalhe: ele pesava 2.110 kg.

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E então veio o Porsche 918 Spyder, um dos automóveis que melhor justifica a necessidade do termo hipercarro: 887 cv, 0 a 100 km/h em 2,6 s, volta no Nürburgring Nordschleife abaixo dos sete minutos, aerodinâmica ativa e sistema híbrido, com dois motores elétricos. Um de 154 cv na traseira, conectado diretamente à transmissão, e outro de 127 cv, independente na dianteira, capaz de tracionar os pneus frontais individualmente e de produzir torque vectoring imediato nos quatro cantos – sim, é basicamente o conceito do SLS Electric Drive, mas em um carro supercarro hipercarro de produção.

Com isso, nossa história chega ao novo Honda NSX.

 

NSX: o próximo passo no controle dinâmico?

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Como falamos no início desta reportagem, o novo superesportivo da Honda tem um motor V6 biturbo central-traseiro combinado a mais três motores elétricos: um na traseira e dois independentes na dianteira, um para cada roda. Agora que você leu sobre o torque vectoring, esta última parte acende uma faísca?

O Honda NSX tem em suas mãos (ou rodas) a oportunidade de levar para as ruas uma experiência nova em termos de controles dinâmicos. Ele poderá ter os mesmos princípios de ultimate torque vectoring do SLS Electric Drive, mas em uma plataforma muito mais realista e leve, pois seus motores elétricos não precisam ser tão potentes e trabalharão em conjunto com o V6 a gasolina, possibilitando um conjunto mais compacto de baterias de íon-lítio. Em suma, o conceito do NSX é similar ao do Porsche 918 Spider, mas num preço (estimado em 150 mil dólares) muito inferior – sem abrir mão de materiais leves e caros, como fibra de carbono e alumínio. Tudo bem até aí. Mas onde está a revolução?

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A outra cereja do bolo está no eixo traseiro. E pode ser uma imensa cereja. Quando questionado, Ted Klaus deu a entender que haverá um sistema extremamente inteligente de controle de diferencial – nossa aposta está em um sistema de bloqueio ativo eletroidráulico ou eletromagnético –, pois afinal, a traseira precisará efetuar o torque vectoring tanto em aceleração (power) quanto em livre rolamento (coasting) para que esta converse de igual para igual com a agressividade dinâmica da independência dos motores elétricos dianteiros.

Mas acima de tudo isso isso, é quase certo (indicativos para isso não faltaram) que a Honda empregará a sua nova geração do 4WS, o sistema de esterçamento ativo no eixo traseiro. Este sistema já foi apresentado pelo centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Honda na época do Salão de Tóquio de 2013, e foi introduzido no Acura RLX Sport Hybrid SH-AWD alguns meses depois. Nele, a configuração é inversa à do NSX: o V6 traciona as rodas dianteiras e os motores elétricos independentes empurram as traseiras, que ainda esterçam até três graus (um grau e meio para cada lado, exatamente como o novo Porsche 911 GT3), alterando significativamente a velocidade de reação do eixo traseiro, especialmente nas entradas de curva.

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Como isso acontece? Bem, com um sistema ativo na traseira os pneus de trás praticamente param de ser arrastados. Mas mais do que isso, em termos de aderência eles deixam de ser reativos para virarem ativos. Com o esterçamento atrás, se induz o ângulo de deriva dos pneus traseiros ao ponto ótimo (em verde, no gráfico acima) quase ao mesmo tempo que os dianteiros, sem que seja necessário esperar que eles sejam empurrados lateralmente pelo jogo de forças físicas da inércia. Em um veículo convencional, os pneus dianteiros chegam ao ponto ótimo e geram o máximo de aceleração lateral bem antes dos traseiros. Sabe aquela chamadinha no volante que você dá para fazer a traseira escorregar, na entrada da curva? É graças a esta diferença de timing da aderência entre a frente e a traseira. Com o 4WS, tudo acontece bem mais próximo, rápido e preciso – as quatro áreas de contato dos pneus com o solo funcionam de forma mais integrada. Além disso, o eixo traseiro fica mais produtivo e controlável em situações de sobre-esterço.

Saiba a história e a técnica do sistema de esterçamento na traseira, presente também no antigo Honda Prelude, nesta outra reportagem.

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Resumo da ópera: você consegue imaginar as possibilidades de dinâmica automotiva de um superesportivo com amortecedores ativos, capaz de esterçar as quatro rodas (caso o 4WS se confirme) e de produzir torque vectoring independente e instantâneo (graças ao torque dos motores elétricos) em cada um dos pneus, além de possuir tração integral? Estamos falando de total controle de vetorização – tracionamento e esterçamento – em cada uma das rodas! A forma como o NSX poderia atacar as entradas de curva e manter seu ângulo de ataque em passo de curva seria literalmente um novo território.

Na mão contrária disso está uma das coisas mais interessantes que Ted Klaus (não perca o nosso vídeo com ele, mais abaixo), engenheiro-chefe e líder do projeto do NSX, me falou: mesmo com toda essa tecnologia, eles foram absolutamente obcecados em oferecer ao piloto uma experiência orgânica old school, de total conexão sensorial ao veículo.

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Para isso, eles estudaram o projeto e testaram diversas vezes o antigo NSX em pista, buscando compreender todos os feedbacks que fizeram a fama do automóvel que Gordon Murray usou como referência de comunicabilidade dinâmica para criar o seu McLaren F1. Para a Honda, manter a organicidade da experiência foi a principal pilastra do desenvolvimento do novo modelo. Graças a tudo isso, neste momento, não há carro que eu queira mais experimentar que este vermelho aí embaixo…

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Se o novo NSX irá explorar ao máximo o novo território que suas características técnicas permitem, bem, talvez não de imediato. Considerando a potência total declarada em torno de 500 cv, a escolha dos pneus Continental ContiSportContact 5P (é o mesmo dos Mercedes-Benz C63 e E63 AMG – de altíssima performance, mas mais confortável e de uma categoria abaixo de modelos extremos como o Michelin Pilot Sport Cup 2) e a postura absolutamente low profile em relação ao potencial do NSX como destruidor de números, diríamos que a Honda criou espaço proposital no lado negro da força para versões futuras. Eles querem que esta versão seja algo que possa ser usado sem compromissos, como era o conceito do carro de 1990. Apesar disso, Klaus chegou a mencionar o Porsche 911 Turbo e o Audi R8 GT como potenciais concorrentes – ou seja, estamos falando de um nível muito sério de desempenho.

Agora, se por acaso no futuro você ver um novo NSX-R e ele deixar o topo da cadeia alimentar dos superesportivos completamente desnorteada, lembre-se do que você leu nesta página.