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Férias no aeroporto: como conheci os aviões e aprendi a gostar deles

São 21 horas. Último voo de Navegantes para São Paulo. Levanto, e corro em direção ao avião. Mas diferentemente do que você está pensando, não sou um passageiro nem estou em um aeroporto. Estou com sete anos na varanda da casa da praia dos meus avós, aprendendo a gostar de aviões.

Dia desses, conversando sobre o tema em um almoço de família, percebi como os aviões causam um fascínio semelhante aos carros e motos nos entusiastas e comecei a pensar por que adoramos certas máquinas enquanto outras são apenas objetos inanimados pouco significantes. Imagino que seja pelo efeito sobre as pessoas: algumas máquinas apenas aceleram nosso trabalho, enquanto outras nos dão poderes sobre-humanos.

Ninguém ama uma batedeira, uma máquina de costura ou uma parafusadeira elétrica porque é possível executar o mesmo trabalho sem elas. Você ainda poderia bater claras em neve, costurar uma cortina ou apertar parafusos. Demoraria muito mais para fazer o trabalho, mas não seria impossibilitado de fazê-lo por não ter estas máquinas. Mesmo os celulares e computadores, são ferramentas que facilitam tarefas que já fazíamos sem eles.

Mas carros, motos, aviões, caminhões e veículos — motorizados ou não — são diferentes. Eles nos fascinam. As pessoas se devotam aos meios de transporte — da simplória bicicleta e do humilde balão, das lanchas infláveis aos ônibus espaciais. E nos entregamos a estas máquinas porque elas nos levam onde jamais poderíamos chegar. Sem rodas, jamais passaríamos da velocidade de nossas pernas. Sem as asas dos aviões, ou a simples flutuação do balão jamais veríamos o mundo do alto — e talvez jamais teríamos descoberto nosso próprio planeta.

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“Foto: Stanley Kubrick”

As razões que nos levam a gostar destas máquinas normalmente combinam memória afetiva com as sensações de descobrimento. Quem nos acompanha, sabe que o rato de pista do FlatOut é o Juliano, o geek-entusiasta é o Dalmo, e eu sou o estradeiro. Parte disso se deve ao fato de ter a família espalhada pelo sul-sudeste do Brasil. Com metade em São Paulo e metade em Santa Catarina (e umas frações no PR e RJ), minha infância e minha adolescência foram recheadas de viagens de carro e lugares familiares longe de casa. A gente até se sente mais parte do mundo.

Mas havia um lugar aonde eu não ia de carro: a casa de praia dos meus avós. A viagem de carro terminava em Guarulhos, onde entrávamos em um Boeing 737 da Varig e, 50 minutos depois, encontrávamos meu avô no aeroporto de Navegantes/SC com seu Del Rey prata. As viagens de avião, como em todo ser humano normal, despertaram em minha versão infantil o fascínio pela aviação. “Estamos a 10.000 metros de altura, viajando a quase 800 km/h!” – dizia a comissária ao meu jovem eu. Impossível não ficar louco por isso.

Mas o que me pegou de jeito mesmo não foi a noção de estar voando somada à alegria de passar férias na praia, e sim o que acontecia depois que eu chegava à casa da praia… que fica exatamente neste ponto marcado na foto abaixo (clique na foto para ampliar):

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Sim: esta reta é a pista do aeroporto internacional Ministro Victor Konder, mais conhecido como “aeroporto de Navegantes”, ou NVT, se você gosta da terminologia aeronáutica. Deitado em uma rede na varanda da casa da praia, eu estava a exatamente 500 metros dos aviões em decolagem e aterrissagem. Era tão baixo que eles passavam com o trem de pouso aberto.
 Na praia, faziam sombra na água.
 Dava pra ouvir as “turbinas” acelerando para a decolagem. Era o tempo certo de sair correndo para o jardim e chegar lá com o avião em frente à nossa casa. E estou falando da virada dos anos 1980 para os anos 1990, quando o céu tinha um pouco mais de variedade: Transbrasil, Vasp, TAM, Cruzeiro do Sul, Varig e Rio-Sul são as que eu lembro até hoje.

Os aviões pareciam todos iguais no começo, mas depois comecei a perceber as diferenças. Uns tinham asas altas, outros tinham as asas baixas, alguns tinham dois motores, outros três, outros quatro, alguns tinham uma asa no topo da cauda, outros tinham os jatos na traseira, alguns sob as asas. Alguns tinham hélices, outros tinham “cordinhas” da cauda até a cabine.

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Mas fui aprender seus nomes de verdade um pouco mais tarde, quando descobri um jeito de chegar no portão de serviço que ficava no lado oposto ao terminal de passageiros. Hoje soa bizarro, mas nos anos 1990 você só precisava jogar a bicicleta por cima de uma corrente e pedalar por uma rua de terra até o portão.

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Essa linha amarela era a tal rua…

A pista era fechada por muros somente nas cabeceiras e no lado urbanizado. No outro lado, onde ficava essa rua de terra, havia somente um alambrado. Então eu pedalava até o final da rua — que ficava na metade do comprimento da pista, sentava em uma pedra e ficava assistindo ao sobe-e-desce de aviões.

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… e estas estacas com arame farpado e uma corrente “impediam” o acesso

Dali eu conseguia ler seus nomes: Boeing 727 era aquele com o terceiro jato no estabilizador, usado pela Cruzeiro e pela Varig. O Boeing 737-300 tinha só um jato em cada asa e era o avião que me levava para as férias, quase sempre pela Varig, uma vez pela Cruzeiro, mas também era usado pela Vasp, Rio-Sul e pela Transbrasil. O Fokker 100 era o modelo com a cauda em T e as turbinas na traseira, que ficou conhecido do grande público pelo trágico acidente da TAM em 1996. O modelo de asa alta e hélices era o Fokker 50, também usado pela TAM. Os menores, com asa baixa e hélices, eram os Embraer Brasília usados pela Rio-Sul e por ricaços locais, que também voavam com o Xingu.

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Boeing 727 da Varig

Meu favorito sempre foi o 727 da Varig, com a pintura antiga da companhia — topo branco, faixa azul, barriga prateada, nariz preto e a silhueta de Ícaro nas laterais do cockpit. Infelizmente ele era um avião difícil de ver por lá; os Fokker e os 737 eram bem mais comuns, especialmente depois que a Rio-Sul passou a usá-los. Falando nela, a empresa tinha alguns Brasília EMB120 prateados que eram belíssimos, especialmente nos voos de fim de tarde, quando o sol à meia-altura os deixava dourados.

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Embraer Brasília da Rio-Sul. Foto: Helio Bastos Salmon

Na metade dos anos 1990 mudei para Santa Catarina e deixei de viajar de avião. A casa da praia ficava a 60 km da minha casa, afinal. Mesmo assim continuei pedalando pelo acesso de serviço do aeroporto até o final dos anos 1990 quando comecei a passar o verão em SP, invertendo o roteiro da infância. Na última vez que voltei lá, acho que em 2001 ou 2002, o aeroporto estava passando por obras de ampliação para receber voos internacionais da Argentina. A pista foi toda murada, e alguns terrenos vizinhos ocupados, fechando a ruazinha de terra.

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A estradinha ao lado da biruta era o tal acesso de serviço. Todo esse muro era apenas um alambrado há 20 anos. Foto: Stephan Kloos Pugatch

Coincidentemente foi o fim de uma era. Com a chegada de companhias aéreas de baixo custo, viajar de avião se tornou algo (felizmente) mais banal, o glamour das viagens aéreas, que já estava em decadência nos anos 1990, desapareceu de vez. A única coisa que não muda é a admiração por estas maravilhosas máquinas voadoras.