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Automobilismo História

Ford vs. Ferrari: a guerra de Le Mans | Parte 3: a última derrota

Depois da frustração nas 24 Horas de Le Mans de 1964, a Ford percebeu que seu programa de endurance — a Missão Le Mans” — precisava de uma guinada radical. Eles haviam chegado ao ponto em que dinheiro nenhum resolveria sem as pessoas certas. Ironicamente, as pessoas certas estavam ao lado de Ford II desde 1961. Foi naquele ano que Carroll Shelby negociou com Lee Iacocca a parceria para iniciar a Shelby American e lançar o Shelby Cobra com o motor Ford V8.

Quando o Shelby Cobra ficou pronto, em 1962, a Shelby American inscreveu o carro nas 24 Horas de Le Mans e conseguiu o melhor resultado que poderia. Foi apenas um sétimo lugar geral, mas dadas as condições — o Cobra não passava dos 240 km/h na Hunaudières — era o que dava para fazer. Além disso, terminar a 24 Horas de Le Mans já pode ser considerada uma vitória quando 35 carros dos 49 inscritos não conseguiram fazer isso.

Como vimos no capítulo anterior, o Shelby Cobra acabou evoluindo na forma do Cobra Daytona Coupé, que eliminou as limitações aerodinâmicas do roadster e superou as Ferrari 250 GTO na edição de 1964 da 24 Horas de Le Mans, vencendo na Classe GT e terminando a prova em quarto lugar. O carro quase conquistou o título em sua classe no Mundial de Carros Esporte (WSC); isso só não aconteceu porque Enzo Ferrari supostamente agiu nos bastidores para cancelar a etapa de Monza (uma das três restantes), impedindo a Shelby de conquistar os pontos necessários para uma virada. Shelby prometeu dar o troco no ano seguinte.

Carroll Shelby tinha uma certa inimizade com Enzo Ferrari. Ele chegou a correr pela Scuderia e recebeu um convite do próprio Enzo para ser piloto de sua equipe em tempo integral, porém o salário era muito baixo e Shelby negou a proposta dizendo que tinha três filhos e ganharia mais dinheiro nos EUA. Enzo se ofendeu porque achava que era uma honra pilotar uma Ferrari. Para piorar o clima, em 1959 Shelby interrompeu a sequência de vitórias da Ferrari em Le Mans ao vencer a corrida com o Aston Martin DBR1 dividido com Roy Salvadori.

Para dar o troco, a Shelby American desenvolveu uma nova versão do Daytona com o motor 427 (7 litros!) e aerodinâmica revisada para atingir 345 km/h na Hunaudières. Eles chegaram a produzir um protótipo, mas não conseguiram produzir as 100 unidades do Cobra 427 para homologar o motor e, no fim, o Daytona foi inscrito com o motor 289.

Ainda durante o desenvolvimento do Daytona, Shelby foi procurado pela Ford. Com o resultado de 1964 — em Mans e no WSC — a Ford se deu conta que seu parceiro conhecia alguma coisa sobre carros esportes e sobre os circuitos europeus.

Na verdade, o que chamou mesmo a atenção da Ford é que, com o dinheiro recebido da fabricante, Shelby contratara os melhores engenheiros de corrida dos EUA, os melhores pilotos de testes (em especial Ken Miles), os melhores soldadores, os melhores mecânicos, montadores e preparadores de motor e com isso fez um carro de corridas vencedor em apenas dois anos e meio.

E mais: o sucesso do Shelby Daytona em Mans, acabou amenizando o fracasso dos Ford GT, afinal, aquele ainda era um carro ligado à Ford.

E foi assim que, no fim de 1964, Carroll Shelby e a Shelby American se tornaram os responsáveis pelo programa do Ford GT. John Wyer ainda era o chefe da equipe, mas todo o desenvolvimento ficou a cargo de Shelby. Além da base europeia da Ford, eles criaram uma unidade auxiliar nos EUA, chamada Kar Kraft. Na prática era a divisão de corridas da Ford, instalada em um hangar do aeroporto de Los Angeles, longe o bastante da burocracia engravatada de Detroit, que atrapalhou o desenvolvimento do Ford GT Mk1 no ano anterior.

 

O “Shelby” GT40

Em dezembro eles receberam dois GT40 (os chassis 103 e 104), que precisavam estar prontos em 1965. Curiosamente, a primeira coisa que Shelby fez foi pintar o carro. Ele queria que o carro parecesse algo feito por sua equipe, então pintou o carro de azul escuro com uma faixa branca longitudinal. Em seguida, ele encarregou o engenheiro Phil Remington de comandar o projeto.

Remington era um preparador de motores da Califórnia e, segundo consta, tinha um certo instinto para saber o que funcionaria ou não. Ele já havia trabalhado nas primeiras etapas do desenvolvimento do GT40, ainda na fábrica da Lola, antes da chegada de John Wyer. Antes de pensar em modificar o carro, ele decidiu entender como ele funcionava e, para isso, levou o carro ao túnel de vento da Ford.

Ali eles descobriram que a aerodinâmica estava não apenas desperdiçando a potência do carro, mas também tornando-o mais lento pela turbulência. Os dutos que deveriam arrefecer os freios e levar ar fresco para os bancos, simplesmente não funcionavam: o fluxo de ar ficava estacionado na porta do duto.

Enquanto isso, o piloto de testes da Shelby, Ken Miles, estava com o outro carro no autódromo de Riverside para desenvolver a geometria da suspensão do carro e percebeu que o acerto era o menor dos problemas. Assim, ele começou a desenvolver tudo o que achava de errado ou inadequado no carro na base da tentativa e erro. Durante estes testes Phil Remington percebeu alguns problemas no carro:  os freios eram subdimensionados e ficavam quase translúcidos quando incandesciam nas frenagens fortes. Ele então refez o projeto de freios, e desenvolveu um sistema de pinças e cavaletes que permitiam a troca de pastilhas e discos rapidamente, em vez dos 20 minutos do modelo anterior.

Depois foi a vez do transeixo Colotti. A Ford já havia exigido a substituição do câmbio do carro por um ZF alemão, mas a experiência de Phil Remington como preparador falou mais alto aqui: em vez de adotar um câmbio que ninguém sabia como instalar no carro e que sequer havia sido testado, ele decidiu manter o câmbio Colotti com as devidas modificações para sanar seus pontos fracos.

O passo seguinte foi a substituição das rodas raiadas por um jogo novo de rodas de magnésio, que permitiram o uso de pneus mais largos. Por isso os Dunlop R6 foram substituídos por Goodyear Indy. As rodas dianteiras tinham oito polegadas de largura, enquanto as rodas traseiras tinham nove polegadas e meia. Foi preciso modificar a porção traseira da carroceria para acomodar os pneus e rodas mais largos.

O motor também foi modificado: a Shelby usou a versão de 4,7 litros com cárter úmido em vez do 4.2 de cárter seco do Mk1. O motivo? O sistema de cárter seco aumentava o peso do carro em 30 kg. Além disso, o motor do Cobra precisava de menos arrefecimento, o que significava menos mangueiras para a dianteira e um radiador menor. Com o radiador menor, a dianteira poderia ser redesenhada para otimizar a penetração aerodinâmica e, de quebra, reduzir peso.

 

Hora de correr no mundo real

Foi assim que ele ganhou seu visual definitivo na dianteira, que estreou na 2000 Km de Daytona de 1965. A Ford inscreveu dois GT40; um com Bob Bondurant e Richie Ginther ao volante, outro com Ken Mies e Lloyd Ruby. As mudanças pareciam ter dado certo: Miles e Ruby ganharam a prova e Bondurant e Ginther chegaram em terceiro.

A corrida seguinte foi em Sebring; as 12 horas de Sebring, disputadas por Phil Hill e Richie Ginther em um carro e Ken Miles e Bruce McLaren em outro. Nela os problemas começaram a aparecer. Primeiro um problema no freio no carro de Hill e Ginther, que liderava a prova, o tirou da liderança. Depois, a suspensão sofreu uma quebra semelhante à sofrida em Mans no ano anterior e teve que abandonar a prova. O outro carro conseguiu um ritmo consistente, mas não alcançou o líder da prova, Jim Hall e seu Chaparral.

No mês seguinte começaram as atividades para Le Mans. A Ford foi à Europa com dois carros da Shelby e dois carros desenvolvidos pela Ford Advanced na Inglaterra. Um deles era um inédito roadster, uma variação que, segundo o chefe da Ford, John Wyer, poderia ser mais competitiva em determinadas situações. Apesar do otimismo depois de duas boas provas nos EUA, os testes em Mans serviram apenas para mostrar que a Ferrari 330P2 era mais rápida que os quatro Shelby. As Ferrari dominaram a tabela de tempos da primeira à quinta posição e só então um dos GT40 deu as caras.

Nos 1.000 km Monza novamente um dos carros teve uma quebra na suspensão, enquanto outro conseguiu terminar em terceiro. A prova seguinte seria também na Itália, mas exatamente a Targa Florio, organizada em um circuito de 71 km na Sicília. Shelby achava prova uma perda de tempo devido à extensão do traçado e, por isso, somente um carro foi inscrito — um roadster devido ao calor na ilha. Por outro lado, o carro tinha o novo câmbio ZF, então Shelby mandou o chefe da equipe, Carroll Smith, para ficar de olho no carro, observando o comportamento da caixa.

Surpreendentemente o carro classificou em terceiro, mas teve um problema com a roda, que se soltou do carro. No fim ele acabou abandonando a prova e foi sucateado quando enviado de volta à Inglaterra.

Duas semanas depois veio a 1.000 km de Nürburgring, a prova mais importante antes de Le Mans. A Ford se inscreveu novamente com quatro carros, sendo dois Shelby e foi desenvolvidos na Inglaterra por Wyer. As diferenças entre eles eram o câmbio ZF nos modelos da Ford Advanced Vehicles (FAV) e Colotti nos modelos Shelby, e as rodas raiadas no modelo da FAV.

A Ford e a Ferrari monopolizaram os treinos, ficando com os primeiros seis lugares do grid. O problema é que foram as Ferrari que conquistaram os três melhores tempos. Na corrida as coisas não melhoraram muito: dois carros tiveram problemas logo na volta de abertura e o terceiro viu seus coxins destruídos antes da metade da corrida.

Para Le Mans o carro precisaria mudar. E Carroll Shelby fez isso da forma mais americana possível, no lugar do motor 4,2 V8 de alumínio, eles usaram o motor 427, de sete litros, usado no Shelby Cobra. O problema é que eles não tinham um carro desse ainda, então foi preciso montá-lo às pressas, testá-lo e enviá-lo à Europa.

 

Você precisa de mais polegadas cúbicas

O carro quase não chega a tempo em Paris; ele foi inscrito poucas horas antes do fechamento da lista de participantes. Enquanto isso, em Riverside Ken Miles corria para terminar o desenvolvimento do carro com o motor Ford FE de 7 litros do Galaxie, bem como algumas modificações aerodinâmicas que resultaram em um bico mais longo. O modelo foi batizado provisoriamente de GT40X e eram apenas protótipos de testes para a próxima fase de desenvolvimento do GT40 — daí o X em seu nome (referindo-se a “experimental”).

Além dos GT40X, a Ford ainda inscreveu quatro carros com o motor 289 (4.7) e a carroceria revisada, sendo dois deles pela Scuderia Filipinetti e pela equipe de Rob Walker, que foram convencidos por John Wyer a usar o GT40 com uma variação de 5,3 litros do V8. Essa configuração, contudo, acabou abandonada após a classificação em favor do 4.7 no carro da Walker. Os outros dois eram um cupê da Ford Advanced Vehicles e o GT40 roadster, que foi inscrito pela Ford francesa como um “seguro” para prevenir decisões dos comissários que pudessem prejudicar os demais GT40. Ideia de Carrol Shelby.

Como se não bastassem os seis GT40, a Ford ainda inscreveu quatro Daytona Coupé, totalizando dez carros na batalha contra a Ferrari. Os italianos não se intimidaram e levaram nada menos que 12 carros, que variavam entre a 330P2, a 275P2, a 365P2 e as menores 250LM. Com 22 carros somente da Ferrari e Ford, o duelo foi amplamente divulgado pela imprensa e o público novamente se interessou pelo primeiro concorrente de peso para a Ferrari, embora alguns tenham criticado o caminhão de dinheiro que a Ford estava investindo para a vendeta.

 

Resta um

Mais uma vez, o dinheiro não comprou a vitória. Apesar do começo consistente, um a um os carros da Ford foram caindo. Primeiro foi o roadster, que teve uma quebra de câmbio na segunda hora depois de apenas 11 voltas. Em seguida foi o GT40 da Rob Walker e da Filipinetti, que abandonaram na terceira hora, ambos com uma das juntas do cabeçote derretidas na 29ª volta.

O próximo foi o GT40X de Ken Miles e Bruce McLaren, que aguentou somente 45 voltas e abandonou na quarta hora com o câmbio quebrado. O GT40 de John Whitmore e Innes Ireland durou um pouco mais: 6 horas e 72 voltas, mas também fritou a junta. Em seguida, na 89ª volta foi a embreagem de Phil Hill e Chris Amon que desistiu da prova depois de sete horas.

Restaram somente os valentes Cobra Daytona, mas não por muito tempo. Na décima hora o carro de Jo Schlesser e Allen Grant também encostou com a embreagem destruída depois de 111 voltas. O Daytona da Filipinetti durou mais 15 voltas antes de também fritar uma das juntas de cabeçote. Duas horas mais tarde, com 158 voltas, o Cobra Daytona de Bob Johnson e Tom Payne fez o mesmo: a junta derreteu e o motor parou. O último abandono aconteceu na volta 204, depois de 16 horas. O Daytona de Gurney e Jerry Grant fundiu o virabrequim.

Ao final da segunda volta no relógio, somente o Daytona de Jack Sears e Dick Thompson receberam a bandeira quadriculada. Eles terminaram na oitava posição com 304 voltas, enquanto as Ferrari faziam uma trinca e venciam a 24 Horas de Le Mans pela sexta vez consecutiva.

O restante da temporada foi igualmente desastroso. O programa da Ford chegava ao seu segundo ano sem nada que justificasse o imenso investimento feito até então, mas ao menos os fracassos serviram para que a equipe acumulasse experiência.

Lembra daquela história de que, na época, para vencer Le Mans era preciso disputar a prova três vezes? No ano seguinte a Ford tentaria pela terceira vez.

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