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Pensatas

Mad Max às avessas: o mundo distópico que se aproxima para os petrolheads

A estreia do filme Mad Max talvez dê a impressão de que o mundo pode um dia ser povoado por carrões divertidos e altamente poluidores em uma espécie de realidade paralela. Mas o que pouca gente parece perceber é que caminhamos para um mundo, automotivo ou não, muito diferente do atual. Mas o automotivo é um dos que correm mais risco de ver nascer algo distópico, pelo menos aos olhos petrolhead.

O camarada Jason Vogel, de “O Globo”, disse certa vez que carros seriam o novo cigarro, algo que já vemos acontecendo aqui e ali, em graus maiores ou menores de demonização da invenção que deu novos horizontes ao homem. Mas mesmo alguns fãs ferrenhos de automóvel não conseguem vê-lo da mesma forma daqui a alguns anos. Acompanhe comigo alguns sinais do que está para acontecer.

 

Carro autônomo

O que mais se tem falado nos últimos tempos é sobre o carro que anda sozinho. Google e Apple veem isso como o próximo terreno a invadir, depois dos reprodutores de música e dos celulares. E quem está mais adiantada nisso é a Google, com seu casulo sobre rodas.

Antes do casulo, que, notem, não tem volante, não podendo ser dirigido nem que o dono queira, alguns fabricantes também se esforçam para vender modelos do tipo até 2020. Esse, aliás, seria um dos trunfos de muitos deles para atingir a meta de morte zero em carros de suas marcas até lá.

Veja como já existe um trabalho de convencimento de que carro autônomo é legal, divertido, descolado etc.

Um personagem recorrente da Google é Steve Mahan, cego. Inclusive nos Toyota Prius que serviram de base para o desenvolvimento do casulo.

A Google recentemente disse que seus carros autônomos já se envolveram em 11 acidentes de 2009, quando ela iniciou os testes, até hoje. Foram 1,7 milhão de milhas percorridas em modelos autônomos de lá para cá.

Para as estatísticas oficiais, de todo modo, só contam os dados de setembro de 2014 em diante, data em que a Califórnia começou a emitir as licenças para o uso de veículos autônomos. E já ocorreram quatro acidentes com os 48 automóveis licenciados. A média nos EUA é de 0,3 acidentes para 100 mil milhas. Os carros autônomos registram 2,9 para 100 mil milhas.

A tecnologia se apoia em sensores, câmeras, computadores robustos e em sistemas elétricos, como a direção, que já é usada por modelos que estacionam quase sozinhos. Com freios, transmissões e aceleradores eletrônicos, a preocupação está apenas em questões legais.

Google Autonomous Car

Se seu carro autônomo bater e matar alguém, de quem é a culpa? Do fabricante? Do governo, que deu autorização para esse robô circular por aí? Sua, porque comprou a encrenca? Como se vê, a questão vai muito além da viabilidade técnica e mercadológica. Afinal, carros autônomos já existem, mas como vendê-los a um valor acessível? Tudo isso é coisa para resolver até 2020.

Quer mais um exemplo? Um dos carros mais comentados da Mercedes-Benz este ano não apareceu em um salão tradicional, mas sim na CES, ou Consumer Electronics Show, em Las Vegas. Foi lá que a empresa mostrou (adivinha?) seu carro autônomo conceitual, o F 015.

Mais do que isso, pense comigo: por que os fabricantes atuais, correndo o risco de serem responsabilizados por eventuais acidentes, querem desenvolver a tecnologia? Continue por aqui que a gente fala disso mais adiante.

 

Proibição de “antigos” no centro de Paris

Quem quiser andar de Citroën 2CV pelo centro de Paris tem até junho para isso. A partir do mês que vem, carros produzidos antes de 1996 ficarão proibidos de rodar no perímetro urbano da cidade das 8h às 20h. Em 2016, caminhões e ônibus anteriores a 2001, assim como motos feitas antes de 2000, também entrarão na restrição, que abrangerá de 2017 em diante veículos diesel feitos antes de 2011.

Dizem que a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, vai abrir exceção para os clássicos, com uma licença especial, mas talvez seja melhor se despedir de cenas como essas.

Madri também criou uma lei parecida. Valendo desde janeiro deste ano, ela proíbe completamente a circulação de carros em uma área central de 353 hectares. O discurso de “recuperar espaço para as pessoas”, um dos preferidos de arquitetos e urbanistas que não gostam de carros, está pegando em lugares importantes.

 

Invasores de corpos

Se o clássico Shelby Daytona voltasse à vida, ele teria dois motores elétricos, um para cada eixo. Cada um com cerca de 250 cv e 138,3 mkgf disponíveis do zero. Com 1.474 kg, que incluiriam três pacotes de baterias de íons de lítio distribuídos por toda a base do carro, ele aceleraria de 0 a 100 km/h em 3,4 s. Aliás, acelera, segundo a Renovo, que fabrica o tal Daytona eletrizante.

2015-renovo-coupe-abre

Na apresentação do carro, note como Christopher Heiser, CEO da empresa, se apropria de toda a linguagem de desempenho e performance que normalmente conhecemos com motores a combustão e tenta aplicá-lo ao Renovo Coupé:

Se o filme “Os Invasores de Corpos” tivesse uma versão automotiva, seria o Renovo. Ele parece um clássico americano que vale uma fortuna. Ele acelera como um esportivo. Os componentes elétricos ficam pornograficamente expostos, e são bonitos de ver, para tentar gerar nos fãs de automóveis o mesmo tipo de reação que carburadores, coletores e outras entranhas veiculares causam.

Existem tentativas de emplacar carros elétricos bem mais originais, como o Tesla Model S. Na versão P85D, ele dá pau até em Dodge Challenger HellCat, apesar de o apresentador da Motor Trend dizer que ele é a melhor refeição vegetariana do mundo. Petrolhead que faz “bola de neve” com pó de pneu, sabe como é?

Ou o Rimac Concept One, feito na Croácia.

Ou o Exagon Furtive e-GT, francês. Que já foi até testado pelo filho de Alain Prost, o também piloto Nicolas.

Carros elétricos são considerados o futuro porque não emitem poluentes. O argumento de que a eletricidade pode ser gerada por meios poluentes, como a queima de carvão, não pesa tanto porque, para os críticos, o grande defeito dos automóveis a combustão é gerar poluentes justamente onde a maior parte das pessoas está, ou seja, nas grandes cidades.

Motores elétricos também são considerados energeticamente mais eficientes. Um motor a combustão só consegue converter em movimento cerca de 30% da energia contida no combustível que queima. O restante some em perdas mecânicas e térmicas, um desperdício de 70%. Na melhor das hipóteses.

Eficiencia-energetica

Com a pressão por mais eficiência em tudo, o motor térmico entra na lista de animais em extinção. Basta que surja em seu lugar algo economicamente viável e mais interessante. E as pesquisas andam fortes neste sentido.

Outra vantagem dos elétricos seria sua integração com a rede das residências. Existe um negócio, ainda esperando concretização, chamado de smart grid. Com ele, a rede elétrica deixa de ser uma via de mão única, apenas recebendo energia da distribuidora. Ele permite que, se tiver um excedente de energia em casa, você possa vendê-la à rede. Em outras palavras, sua casa passa a fazer parte da rede de distribuição.

Smart grid

Há custos variáveis de energia elétrica por horário. Com o smart grid, você pode se programar para comprar apenas no período em que ela é mais barata e vendê-la no momento de pico de consumo. Ainda que vender energia pareça um negócio maluco, não é se você usar células fotovoltaicas ou mesmo pequenos geradores eólicos. Mas como armazenar? Com baterias. O carro elétrico pode ser uma dessas baterias, mas a Tesla, já de olho neste mercado, lançou há cerca de uma semana o Powerwall.

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Entendeu como a coisa pode ser modificada? Mas ainda tem mais.

 

Tudo sob medida. Como serviço

O engenheiro britânico Hugo Spowers, formado em Oxford, começou sua carreira construindo carros de competição e restaurando antigos. Fez isso por 15 anos até ter um estalo: o mundo estava em mudança e era preciso acompanhá-las. Foi quando ele criou a empresa Riversimple. Com uma proposta inovadora: o carro é open source, o que permite que qualquer um o construa. Onde quiser. E isso é apenas parte da proposta.

Os carros da empresa não serão vendidos. Você pagará uma mensalidade para usá-lo. Mas não pagará combustível. Nem manutenção ou seguro. Tudo fica por conta da Riversimple. E essa é a mágica dos caras: transferir do consumidor para o fabricante o ônus da durabilidade e a vantagem na economia de combustível. Pensa só: se o carro não quebra, quem economiza, em um esquema destes? Se gasta pouco, de quem é a vantagem? Sempre do fabricante.

Mais do que a tecnologia, é a proposta que muda tudo o que se conhece sobre ter um automóvel. Em vez de vender carros novos para o cliente, a Riversimple o aperfeiçoa e faz um update. Como se ele fosse um software. O cliente sempre tem nas mãos o modelo mais atualizado. Sem precisar trocá-lo.

Riversimple-raio-X

Com isso, cai a necessidade de consumo de matéria-prima. Você não precisa comprar um carro novo todo ano e se preocupar com a venda ou a reciclagem do antigo. A produção cai dramaticamente, sem que você deixe de ser servido por um veículo. E se resolve, em parte, duas demandas conflitantes do mundo: crescer continuamente, com cada vez mais consumo de materiais, e preservar recursos naturais. Como se faz isso no sistema atual? Impossível. Será preciso mudar o modo como as coisas são feitas.

“A venda de serviços permite que você ofereça novas tecnologias ao mercado a preços competitivos com os da antiga tecnologia. Mesmo que os custos da cadeia de produção sejam bem mais altos. Isso é o que nos permitirá usar a tecnologia da pilha de combustível. Queremos que nosso modelo comercial tenha uma economia de 53 km/l. Se você vende o carro, essa economia vai para o consumidor. Mas não vendemos. A gente faz um contrato de serviço. Então, toda a economia vem para nós. É o que nos permite pagar mais no começo pelas pilhas até que a escala torne seus preços comparáveis aos do carro com motor a combustão. E eles são extremamente baixos”, diz Spowers.

É por essa razão que o carro é open source: isso reduz os custos de desenvolvimento. Tudo é feito em colaboração para se tornar viável. Parcerias são a palavra de ordem.

Riversimple-investment

 

“A indústria hoje se debate para fazer o preço do hidrogênio chegar ao mesmo preço da gasolina em termos caloríficos. Ele teria de custar 5 libras por quilo para chegar lá, mas o raciocínio está errado. Você tem de pensar no custo por quilômetro. Como um carro a combustão hoje faz hoje cerca de 10,4 milhas por litro, o que dá, a preços atuais, um custo de 12,8 centavos de libra por milha, nosso carro se torna competitivo se pudermos pagar até 30,79 libras esterlinas por kg de hidrogênio. Porque ele roda 300 milhas com 1 kg de hidrogênio”, diz o engenheiro.

A receita de usar pilhas gigantescas, como a que a Toyota usa no Mirai, é equivocada, segundo ele. “Toda a carroceria do carro é igual, com painéis estampados. A indústria precisa manter sua estrutura atual para sobreviver. Eles continuam com a mesma mentalidade de fazer uma mesma coisa para acelerar e manter velocidade. Na Riversimple, as duas funções são separadas. Temos supercapacitores para acelerar e a pilha para manter velocidade. Isso nos permite ter uma estrutura muito mais leve. A tecnologia exige algo novo. Um jeito novo de pensar o carro.”

Riversimple-estrutura-energetica

No quadro, ICE é o motor a combustão (internal combustion engine), battery é o elétrico e network electric é o carro da Riversimple. O ICE não regenera energia (parte da escala negativa). O elétrico regenera parte dela. O network electric regenera tudo. E tem só o necessário para cada função: aceleração, velocidade de cruzeiro e força em ladeiras

“Em um carro comum, em velocidade de cruzeiro, você está usando cerca de 20% da potência do motor. Então, você tem um motor cinco vezes maior e mais pesado do que você precisa na maior parte do tempo. Mas um motor precisa de uma transmissão, que também é cinco vezes maior do que você precisa. Com isso, você tem uma estrutura mais pesada, porque ela tem que lidar com esses componentes pesados em um acidente. Como ela é pesada, você precisa de um motor mais forte. É um círculo vicioso. No nosso carro, tudo é dimensionado para o uso que foi planejado. Ele vai acelerar até a velocidade máxima de 90 km/h em cerca de 9 segundos.”

Riversimple-moto

Se é assim, por que a indústria não trilha um caminho diferente? Simples: acionistas. “Não há nada familiar nisso em que eles possam se apoiar. Investidores sabem a diferença entre risco e incerteza. E a indústria automotiva não tem incertezas. Ela é a indústria mais bem compreendida do mundo. Indústrias maduras são muito boas no que elas fazem. E são muito focadas no que os clientes querem. Isso impede que elas invistam nas novas tecnologias e que sejam pioneiras nisso. Há sistemas formais pra medir o que o consumidor quer. Só que, como já disse Steve Jobs, às vezes o consumidor não sabe o que quer até ser apresentado ao produto. Sabe quem inventou o relógio digital? Relojoeiros suíços. Fizeram o relógio para mostrá-lo em feiras e ridicularizá-lo. Só que os clientes gostaram tanto do relógio digital que a indústria suíça quase foi à falência por causa dele.”

 

Distopia

Temos diante de nós um universo conspirando para mudanças profundas. Em um artigo excelente de Zack Kanter, o site Quartz traz uma análise devastadora do que está por vir. Lembra da pergunta do início do texto, do por que as indústrias automotivas estão todas correndo atrás do carro autônomo? Simples: sem um que seja competitivo, elas estão fadadas a desaparecer.

Para quem não tem paciência de ler ou anda com o inglês enferrujado, o texto traz estatísticas interessantes. Segundo ele, em 2025 os autônomos serão uma realidade de mercado por pelo menos cinco anos.

Um estudo do banco Morgan Stanley revela que automóveis são dirigidos apenas 4% do ano. Considerando que o custo estimado de propriedade, nos EUA, é de US$ 9.000, e que um ano comum (não bissexto) tem 8.766 horas, um carro custa US$ 1,03 por hora. Só para ter. Se forem consideradas as horas de uso efetivo, (quase 351 horas, em um ano), a conta sobe para US$ 25,6. Nos EUA.

Cerca de 60% de todos os adultos do país do automóvel teriam um carro autônomo, segundo um estudo da Cisco Systems; 32% deles nunca mais voltariam a dirigir, se tivessem um veículo do tipo. O aplicativo Uber, por exemplo, pretende trocar todos os seus motoristas por automóveis que se dirigem sozinhos. Com 9.000 veículos autônomos, o Uber tiraria de circulação todos os 13.000 táxis amarelos de Nova York. E é ai que a porca torce o rabo.

The product of a unique development collaboration, the NV 200 Taxi reflects the input of hundreds of taxi owners and drivers, and thousands of passengers from all walks of life.

Carros autônomos causariam desemprego em massa. Primeiro, porque os fabricantes de automóveis atuais não resistiriam. O modelo de negócio deles está baseado no sistema de compra e venda de novos modelos. Há investimentos maciços em ferramental, insumos e empregados que um carro autônomo não exigiria. A estimativa é que a maioria não passa de 2030.

Segundo, porque toda a cadeia em torno do negócio também tende a ruir. Para que ter seguro de um veículo que evita mortes e acidentes? Financiamentos? Peças de reposição? Estacionamentos? Nos EUA, cerca de 915 mil pessoas trabalham diretamente com produção de carros e autopeças. Motoristas são mais 6 milhões. A quantidade de gente envolvida é gigantesca.

Phila Unemployment Project

O mundo resultante pode até ser muito melhor do que o atual, mas que parece fora de lugar, diante do que conhecemos, não há dúvida. Dizem que sempre haverá espaço para apaixonados por motores, como há hoje tabacarias e lojas de filme para máquinas. Só os fortes sobreviverão. Bem-vindo ao clube.

UPDATE: Aparentemente, os CEOs das fabricantes estão pressentindo a maré. Mark Fields, da Ford, falou que todas estão em perigo em fevereiro deste ano. Sergio Marchionne, CEO da FCA, quer se aliar ao Google ou à Apple se não encontrar um parceiro na indústria para reduzir custos e ganhar escala. Ninguém quer ser a nova Kodak.