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Pensatas Trânsito & Infraestrutura

Mais leis e proibições ajudam realmente a diminuir os acidentes?

Você não precisa de muitas estatísticas ou explicações para convencer alguém de que usar o celular ao volante não é uma coisa muito segura de se fazer. Em São Paulo, por exemplo, o uso de celulares ao volante é o quarto fator responsável por acidentes na cidade, e nos EUA há um problema crescente com o texting and drive, ou dirigir e digitar (o que faz tanto sentido quanto ler uma revista dirigindo), que se tornou a principal causa de mortes de adolescentes no trânsito por lá.

É por isso que em quase todo o mundo as leis de trânsito proíbem ou, ao menos, inibem o uso do telefone enquanto se dirige. Mas estudos recentes publicados nos EUA mostram que a proibição do uso de telefones ao volante não reduziu o número de acidentes.

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O mais recente deles, intitulado “Transportation Research Part A: Policy and Practice” analisou os números da Califórnia desde 2008, quando os celulares foram proibidos no estado. Segundo as estatísticas apresntadas, o número de acidentes diários em toda a California caiu de 66,7 para 65,2 durante os seis anos do banimento.

Outro, publicado pelo IIHS, o instituto de segurança viária dos EUA, analisou os dados de acidentes em 2009 e 2010 — os dois anos seguintes à proibição dos celulares, e não encontrou sinais de que ela tenha reduzido os acidentes.

Apesar da ineficácia, os estudos desencadearam uma mudança de foco na discussão, que nos parece muito válida: o que torna os celulares potencialmente perigosos ao volante é a distração do motorista ao usá-los. Então a questão não é apenas o uso do celular e sim a distração ao volante, algo que já existia antes dos celulares.

A distração ao volante, se percebida por um fiscal ou agente de trânsito é passível de multa prevista no artigo 169 do Código de Trânsito Brasileiro (dirigir sem atenção ou sem os cuidados indispensáveis à segurança), mas ela só pode ser lavrada se o condutor for abordado, e por isso impossível de se fazer com monitoramento eletrônico. Então, se você não corre o risco de ser pego, por que não fazer?

Cometer ou não a infração é uma questão ética, de consciência. Você poderia muito bem pegar seu carro neste instante e fazer um racha na rua de casa com um vizinho louco sem ser importunado pela polícia, mas não faz isso por que tem noção dos riscos. Quem usa o telefone enquanto dirige, ou toma só uns goles antes de pegar a estrada, não faz isso por mera transgressão e desapego às leis, mas por não ter a noção exata dos riscos que está correndo, ou não temer as consequências.

No Brasil, a Lei Seca teve resultados semelhantes ao banimento dos celulares nos EUA. O consumo de álcool por motoristas é coibido desde 1998, quando o atual código de trânsito brasileiro entrou em vigor, e foi totalmente proibido há cinco anos, com a redução dos limites de álcool no sangue para zero, dando origem à Lei Seca. Nos primeiros três anos, o número de acidentes não diminuiu, e a lei só obteve os resultados esperados quando a adotada a tolerância zero, o aumento das multas e o endurecimento da fiscalização — o que nos leva a uma questão: se havia um limite de tolerância desde 1998, por que a fiscalização só se tornou mais intensa e a punição mais severa depois de se criar mais uma lei?

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Ainda é importante citar que nos últimos cinco anos os carros evoluíram, a frota se renovou e mais do que nunca temos carros com airbags e ABS circulando. Como saber, então, se foi realmente a proibição do consumo de álcool a responsável pela redução de mortes no trânsito, e não a renovação da frota ou até mesmo uma eventual conscientização prática dos motoristas?

E aqui entra nosso argumento: mais leis e mais proibições nem sempre tornam o trânsito mais seguros. Os motoristas só mudam seu comportamento quando estão plenamente cientes das possibilidades e dos riscos que correm — e por riscos entenda “perder dinheiro”, “ser preso” ou “morrer”. Só que isso exige uma contrapartida do poder público. Começando pela qualidade da habilitação, que é a única forma de um motorista assimilar causas e consequências de seu comportamento ao volante, passando pela qualidade da manutenção da infra-estrutura e até a eficiência das leis para punir exemplarmente as piores consequências.

No Brasil, onde o Ministério da Saúde divulgou 36.000 mortes causadas por acidentes de trânsito, o presidente do Observatório Nacional de Segurança Viária afirmou que o processo de habilitação é apenas um adestramento, sendo insuficiente para transformar um adulto em um motorista capacitado. Mas como a habilitação é uma concessão oficial do Estado, a maioria dos habilitados realmente acredita que tem capacidade de conduzir em diferentes situações com total segurança. O resultado não poderia ser menos trágico.

Há ainda a questão da manutenção do sistema viário: o motorista precisa da ajuda da sinalização e da engenharia de tráfego para dirigir com segurança e evitar acidentes. Não somos robôs dotados de sensores multifuncionais e programados para dirigir carros. O que fazemos é avaliar as condições e tomar decisões diante delas. Sem todas as condições para avaliar, é mais difícil tomar decisões corretas. Dirigir sem sinalização é como entrar em uma prefeitura sem identificação de setores e repartições. Você não sabe para onde ir, nem o que pode ou não pode fazer

Depois há o cumprimento da lei. Em 2012, um jovem americano de 18 anos causou um acidente enquanto digitava uma mensagem em seu celular nos EUA. Ele avançou um cruzamento sem parar e bateu em outro carro, cujo motorista morreu no local. O garoto foi condenado a um ano de prisão como exemplo para a sociedade e como precedente para futuros julgamentos semelhantes. Ele cumpriu sua pena e já está livre, e provavelmente dirige com o celular desligado. Dois anos antes, em 2009, o ex-deputado Fernando Ribas Carli Filho causou um acidente em altíssima velocidade em Curitiba (PR) matando dois jovens que tiveram o azar de cruzar seu caminho. O processo se arrasta até hoje e Ribas continua impune.

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Logicamente nada disso isenta os maus motoristas da responsabilidade de seus atos, nem os justifica, e aqui entra a questão da fiscalização — que deve ser sempre acompanhada de campanhas de conscientização e debates públicos sobre o tema.

Como vimos anteriormente, todos os exemplos bem-sucedidos de redução de acidentes de trânsito levaram em consideração, acima de tudo a conscientização dos motoristas e o reforço na fiscalização. O código de trânsito já tem leis suficientes para coibir comportamentos de risco dos motoristas, basta apenas elas sejam cumpridas, seja por educação ou fiscalização.