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Project Cars Project Cars #102

Project Cars #102: como é feito o projeto de suspensão e direção de um Baja SAE (e as surpresas na competição)

Bem, amigos da Rede Globo do FlatOut!, estamos de volta com o Project Cars #102, o projeto e construção do Baja SAE da Equipe Imperador UTFPR – Câmpus Curitiba. Quando o nosso último post foi escrito, a 21ª competição nacional Baja SAE Brasil, para a qual o nosso PC foi desenvolvido, já havia ocorrido. Foi a primeira competição do Jaguara 8. O carro nos surpreendeu pelo bom desempenho dinâmico logo de cara, que rendeu muita diversão no estacionamento de ônibus da UTFPR e diversos elogios do juiz da prova de conforto na competição.

Entretanto, nem tudo são flores. Até a prova de Suspension & Traction tudo correu muito bem…

Prova de S&T da competição nacional – desculpem a qualidade digna da década passada!

O nosso alívio ao final da prova denota que ainda tínhamos muitas incertezas quanto ao nosso carro. No enduro, a corrida de 4h e prova principal do evento, essas incertezas infelizmente se confirmaram.

Logo nas primeiras voltas, tivemos uma correia do CVT arrebentada devido a superaquecimento. Depois de substituir – e perder muito tempo devido à localização do carro parado na pista – a correia fritou novamente após algumas voltas. A solução veio com a ajuda dos nossos colegas da equipe UFMG Baja SAE (Mais uma vez, muito obrigado! E parabéns por representar o Brasil no Baja SAE Maryland!) que nos emprestaram uma correia, e com a furação da proteção do CVT para melhor refrigeração.

Engana-se aquele que pensa que o sofrimento parou por aí. Desde a montagem do carro, sabíamos que o calcanhar de Aquiles do nosso carro era a caixa de direção. Alguns erros de projeto passaram batidos e, devido ao tempo curto entre o Baja Sul 2014 e o Nacional 2015 para construir um carro inteiro do zero, tivemos diversos problemas de fabricação que acentuaram esses erros e resultaram na catastrófica falha da cremalheira.

Agora, uma pequena aula sobre comportamento mecânico dos materiais:

95% das falhas de componentes mecânicos na indústria – seja ela qual for – ocorrem por um fenômeno chamado fadiga. A fadiga ocorre quando um componente é submetido a carregamentos cíclicos, ou seja, um esforço que se repete periodicamente – seja este período regular ou não. Todos os componentes de um veículo são submetidos a este tipo de carregamento, já que muitas vezes são componentes que rotacionam, são submetidos a inputs orgânicos (vindos do motorista ou ambiente) e expostos às excelentes condições de nossas estradas.

O grande problema da falha por fadiga é que ela ocorre de forma repentina e sem deformação plástica: o componente não entorta, não estica, não dá nenhum tipo de aviso que está prestes a quebrar. A menos que se faça uma análise de fadiga – seja ela computacional ou real – é impossível prever a falha da peça. A dificuldade de fazer uma análise computacional de fadiga é que o comportamento do componente na realidade é muito dependente do acabamento superficial e da quantidade de impurezas no material. Qualquer reentrância ou inclusão pode agir como um concentrador de tensões e reduzir significativamente a vida do componente em fadiga.

Vídeo sobre teste de fadiga

Fim da aula sobre comportamento mecânico dos materiais. Se você não dormiu até aqui, vai entender porque a nossa cremalheira falhou.

Nossa cremalheira tinha roscas nas duas pontas, para fixação do braço de direção. Lembra dos concentradores de tensão? Então. Uma rosca concentra tensões de uma forma absurda, e certamente este fator foi determinante para a quebra durante a competição. Além disso, ela era feita de alumínio, que não é um material conhecido por possuir boas propriedades de resistência à fadiga, apesar de ser muito leve e ter um comportamento em carregamentos estáticos equivalente (ou às vezes superior, no caso do alumínio aeronáutico que utilizamos) a alguns aços. Foi um erro de projeto que infelizmente deixamos passar e nos custou uma colocação melhor. Bem, não estamos neste projeto para aprender, afinal?

Tudo isso nos motivou a fazer uma revisão completa do nosso projeto, e neste post vamos detalhar mais a fundo a participação da suspensão e direção no desempenho de um Baja SAE. Mas qual é mesmo o papel da suspensão e direção em um Baja?

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Trecho do Enduro no Baja SAE Brasil 2015

Como em qualquer veículo, a suspensão, em conjunto com a direção e à distribuição de peso, define o comportamento dinâmico do baja. Para nós, é ideal ter um carro sobreesterçante, ou seja, que saia de traseira, mesmo a baixas velocidades. Além disso, a capacidade de superar obstáculos deve ser excepcional, o que significa que a altura de rodagem (ground clearance) e o curso de suspensão devem ser bem generosos.

Em resumo, um baja deve ser capaz de fazer isso:

E ainda dar umas traseiradas aqui e ali, de preferência sem quebrar.

Mas como? Vamos à receita de bolo:

  • 1 Sistema “Duplo A” na suspensão dianteira;
  • 1 Sistema de pinhão e cremalheira na direção;
  • 1 Sistema multilink com 3 braços na traseira
  • 4 pneus de quadriciclo;
  • Muitos membros com pouco o que fazer nos finais de semana e menos juízo ainda.

Mas claro que comprar componentes de prateleira e aplicar no carro formando estes subsistemas seria muito fácil (ou talvez não). Da nossa lista de componentes, somente pneus, rodas, rolamentos, amortecedores e parafusos são comprados. O resto é todo fabricado por nós ou através de parcerias com nossos patrocinadores. Novamente, somente desenhar vários componentes e rezar para que eles interajam bem quando montados ainda seria relativamente fácil. Assim, contamos com a ajuda da tecnologia para o pontapé inicial: começamos nos baseando no modelo 3D da nossa estrutura tubular e então utilizamos o software ADAMS/Car para definir a geometria de suspensão:

Pois bem. Tanto a suspensão dianteira como a traseira começam como apenas alguns pontos aparentemente “jogados” num esboço de componentes no SolidWorks. Após isso, é hora de utilizar o ADAMS para verificar se a posição destes pontos no espaço resulta numa geometria com comportamento que auxilie na obtenção das premissas de projeto. Como é de se esperar, logo de cara é praticamente impossível atingir a geometria ótima.  Aí que a mágica começa. Um processo iterativo de alteração da posição dos pontos de fixação (acreditem, 2 ou 3 milímetros podem ser a diferença entre sucesso e fracasso) até chegar numa geometria com o balanço ideal de características para então começarmos a fase de desenho dos componentes em sua forma final.

É nesta fase que temos que fazer o maior número de concessões. Aquela geometria teoricamente perfeita pode ser impossível de fabricar, ou, na melhor das hipóteses, terrivelmente cara. O braço de direção pode bater no parafuso que fixa o amortecedor. Os rolamentos esféricos do amortecedor podem não ter liberdade o suficiente para suportar o curso que precisamos. Etcetera, etcetera, etcetera. 

Mas como diria Jack, vamos por partes, começando pela suspensão dianteira, juntamente com a direção. A receita é a seguinte: Sistema tipo “Duplo-A” ou braços triangulares sobrepostos, como gostam de chamar aqui no FlatOut!. A escolha desse tipo de suspensão se deve ao seu bom controle e possibilidades de ajuste de cambagem, bem como à maior facilidade de adaptação do sistema de direção.

4-dianteira

Suspensão dianteira tipo “Duplo-A” com conjunto mola-amortecedor pneumático Fox Float R

Se fôssemos detalhar tudo que foi levado em consideração até chegar no conceito final, esse post teria umas 90 páginas. Então vamos focar somente nos pontos principais de projeto. No caso da dianteira, um dos quesitos que mais nos debruçamos foi o chamado bump steer. O bump steer é a variação de convergência (que neste caso podemos chamar de esterçamento) da roda com o curso da suspensão. A presença do bump steer passa a uma sensação de imprecisão da direção em curvas com terreno irregular, podendo levar à perda de controle, além de induzir esforços prejudiciais aos componentes da suspensão e direção.

Vídeo explicativo sobre o bump steer.

Como visto no vídeo acima, com braços triangulares e braços de direção de mesmo comprimento e paralelos entre si, o bump steer seria eliminado, mas teria como efeito colateral um aumento na variação de cambagem, diminuindo a área de contato pneu-solo, e consequentemente a aderência. Falta de aderência na dianteira resulta em subesterço em curvas, o que é justamente o que queremos evitar. Então, a solução é usar braços de comprimentos diferentes e brincar com a posição da caixa de direção (em altura e posição longitudinal no carro) até chegar numa curva na qual o bump steer é o mínimo aceitável – embora ainda existente. A princípio parece um trabalho de adivinhação, mas após alguma leitura e um pouco de prática nos softwares é possível perceber a relação entre as modificações que se faz nas posições dos compontes e o efeito na curva final.

Para construção dos componentes da suspensão dianteira, utilizamos alumínio de classe aeronáutica nas mangas de eixo e cubos de roda e barras sextavadas de alumínio para acionamento da direção. Os braços triangulares são feitos de tubos de aço SAE 1020, devido ao seu baixo custo e resistência mecânica satisfatória para a aplicação em questão. Para a direção, utilizamos um cápsula de alumínio usinada em CNC. O pinhão é de aço SAE 4340, fazendo par com a cremalheira, agora também de aço e não mais com concentradores de tensão. Além disso, as peças do sistema de direção são submetidas a tratamento térmico (martêmpera no pinhão e têmpera por indução na cremalheira, para minimizar o empenamento) visando conter o desgaste após períodos prolongados de funcionamento.

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Conjunto de suspensão e direção sendo posto à prova (oficialmente) pela primeira vez na prova de conforto da competição nacional

Na definição da geometria da suspensão traseira o papo é um pouco diferente. A variação de cambagem se torna um fator secundário, pois poderia retardar a saída de traseira do carro. Aqui nosso foco é a definição do centro de rolagem e, quase que contraditoriamente, o roll steer, que é a variação de convergência das rodas traseiras com o trabalho da suspensão em curvas.

Ao definir a posição do centro de rolagem da traseira, temos que ter em mente que ele deve ser mais alto que o da dianteira. Isso acelera a transferência de carga entre as rodas em curvas, fazendo que o limite de aderência se aproxime para a roda exterior à curva, fazendo com que o carro deslize. A posição desse centro é dada pelo prolongamento dos eixos imaginários dos braços da suspensão responsáveis pelo controle da trajetória lateral da roda e do ponto de contato dos pneus com o solo.

No caso da dianteira, pelos braços triangulares e de direção, e na traseira, pelos camber links, além de uma pequena parcela pelo trailing arm, braço principal da suspensão traseira. Por este motivo, definir a altura do centro de rolagem de um sistema multilink é mais complicado que de um sistema duplo-A, tornando primordial ter a ajuda de softwares como o ADAMS/Car no processo.

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Definição do centro de rolagem numa suspensão duplo-A. Imagem: Paul Geithner, auskellian.com

Já o papel do roll steer, numa tradução literal, é induzir o esterçamento das rodas traseiras no sentido contrário ao das rodas dianteiras, resultando num aumento da agilidade em curvas de baixa velocidade.

Sim, a ideia é a mesma do Porsche 911 GT3. A diferença é que o nosso sistema depende do curso da suspensão, ou seja, o “esterçamento” máximo das rodas traseiras – pouco menos de 2° – só se dá quando as molas-amortecedores externos à curva estão completamente comprimidos e os internos completamente estendidos, uma situação difícil de acontecer nas curvas fechadas que temos nas pistas que o Baja enfrenta.

No Porsche, devido ao atuador elétrico, essa variação pode ser feita em qualquer etapa do curso da suspensão, além da possibilidade de esterçar as rodas traseiras no mesmo sentido das dianteiras a altas velocidades, aumentando a estabilidade direcional.

Na traseira, a receita de construção dos componentes é praticamente a mesma: trailing arm de aço 1020 tubular, barra estabilizadora tubular também de aço, camber links de alumínio sextavado e cubos de roda de alumínio aeronáutico.

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Suspensão traseira: trailing arm de aço SAE 1020, camber links de alumínio e o onipresente Fox Float R, dessa vez na versão Evol

Ah, claro, os Fox! O que muitos à primeira vista podem estranhar no nosso (e em vários outros) Baja é a ausência de molas recobrindo os amortecedores. Na verdade elas estão lá, só não do jeito convencional. Os Fox Float são conjuntos mola-amortecedor. O papel da mola é feito por uma câmara de ar com pressão ajustável (até 150 psi), que fica na parte mais amarronzada que podemos ver na foto acima.

Por dentro dela passa a haste do amortecedor, cujo fluido e válvulas ficam na parte cinza. Completando o conjunto, ainda há a possibilidade do ajuste da velocidade de retorno dos amortecedores. O que diferencia os dianteiros dos traseiros, além do comprimento, é a presença da câmara EVOL nestes últimos, que alimenta a câmara principal próximo ao final do curso, prevenindo o fenômeno de “dar batente” e possivelmente danificar o conjunto.

No entanto, por ser pneumática, a mola dos Fox Float não é linear, e sim progressiva. Se você se lembra das aulas de física do Ensino Médio, sabe que a força de uma mola comum é dada pela equação F = k.x, Onde k é uma constante e x é a deformação da mola. A diferença da mola pneumática para uma mola comum é que este k não é constante. Assim, o gráfico de força x deslocamento não é uma reta, e sim isso aqui:

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Curvas de força x deslocamento não lineares de uma mola pneumática

Logicamente, isso adiciona mais uma as já não escassas variáveis de projeto, mas o benefício de poder ajustar a pressão de acordo com as condições do terreno e poder experimentar diversas configurações até encontrar a que mais se aproxima das condições do modelo virtual acaba compensando o alto custo desses componentes (cerca de R$ 3.000 pelo par dianteiro e R$ 4.500 pelo par traseiro).

Enfim, amigos do FlatOut!, é isso que queríamos compartilhar com vocês! Nosso projeto está longe de ser concluído, e logo mais vocês devem ver nossa cara de novo por aqui. Já estamos nos estágios avançados de fabricação do Jaguara 9, a atualização do J8 que deverá correr em novembro. Gostaríamos de agradecer publicamente a todos os professores, integrantes, amigos, patrocinadores e ao FO! por nos permitirem a realização desse projeto e contar um pouco mais dele para vocês. Aproveitamos também para divulgar nossa página no facebook: Equipe Imperador UTFPR. Curta e fique por dentro do nosso projeto! Por hoje é só e até mais!

Integrantes do subprojeto Suspensão e Direção que colaboraram durante o projeto: Alison Siegel, Carlos Lira, Eric Tenius, Iuri Barros, Marcus Felix, Matheus Pimentel, Natalha Vasconcelos, Tainara Carloto e Tiago Araujo. 

 

Por Carlos Lira, Project Cars #102

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