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Zero a 300

Por que não se faz mais carros “loucos” como os antigos Citroën?

Em setembro de 1961, a BMW levou ao Salão de Frankfurt dois modelos que mudariam sua história e escreveram as primeiras linhas de seu futuro: o 3200 CS e a Neue Klasse. Se hoje os BMW são aclamados por sua dinâmica exemplar, por serem prazerosos de guiar, a culpa é destes dois carros. Mas eles também introduziram uma outra marca que acompanharia praticamente todos os BMW, e que os torna imediatamente reconhecíveis: o Hofmeister kink, uma das assinaturas de estilo da marca junto da grade duplo-rim.

 

Estes dois elementos dos BMW são peças de resistência na linha evolutiva dos automóveis. Em tempos que o vento e a tecnologia dita as formas dos carros, é natural que as semelhanças ultrapassem o conceito de family face e tornem até mesmo carros de marcas rivais muito parecidos entre si. Pense nos Fórmula 1, por exemplo, apesar do regulamento acentuar a semelhança, o propósito do design os torna muito parecidos, praticamente sem variações mesmo onde o regulamento permite.

E este pode ser apenas o começo do fim dos carros como conhecemos e aprendemos a gostar. A eletrificação e a tendência a transformar os automóveis em “pods” autônomos que serão apenas compartilhados e não mais possuídos, irá acentuar esta semelhança da mesma forma que ônibus, aviões e trens são todos muito parecidos. Sem propriedade, não há mais a necessidade de priorizar fatores emocionais como o design. Uma empresa aérea não compra um avião porque ele é bom e também bonito. A decisão é puramente racional: você escolhe o avião mais adequado à sua função. A menos que a função do avião seja parecer bonito, a beleza fica em segundo plano.

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Boeing vs. Airbus

Sem a estética como elemento de diferenciação, como argumento de venda, os produtos serão praticamente idênticos. Como ônibus, trens e aviões. E não faz sentido um mercado com 75 marcas fabricando a mesma coisa — o que significa que, caso dê certo este futuro distópico no qual os carros são robôs de transporte individual, boa parte das fabricantes deixará a vida para entrar na história.

Essa questão foi levantada pelo presidente da Aston Martin, Andy Palmer, nesta última quarta-feira (6) durante o Salão de Turim, ao dizer que a indústria precisa encontrar um modelo diferente de negócios (diferente do qual está se direcionando para o futuro), e que a beleza ainda é importante para os consumidores, que ainda procuram emoção em seus carros.

 

E isso me traz ao verdadeiro motivo deste post: onde estão os carros cheios de personalidade como os antigos — e excêntricos — Citroën?

A marca francesa é, na minha modesta opinião, o exemplo mais emblemático desta padronização dos carros. Ao longo dos anos a Citroën mudou sua imagem de uma marca envolta em mitos e que fazia seus carros ao seu modo para uma fabricante de versões francesas de carros alemães — o que, ironicamente, poderá se tornar verdade agora que a Opel faz parte do grupo PSA.

Quando o mundo inteiro fabricava carros de tração traseira com carroceria sobre chassi, a Citroën veio e sacou um carro feito em monobloco e com o câmbio ligado às rodas dianteiras. Era tão diferente do resto do mundo que foi batizado de “Tração Dianteira”. Nessa mesma época a fabricante usava um arranjo quase bizarro de suspensão com molas longitudinais e braços arrastados/empurrados que dava aos seus carros uma estabilidade acima da média. Era tão bom que deu origem ao mito de que Citroëns são incapotáveis e que a fábrica daria um novo de presente a quem, por acaso, conseguisse o feito de capotar um de seus carros.

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Depois veio o DS e a Citroën achou que molas e amortecedores eram muito banais, e inventou uma suspensão hidropneumática que combinava conforto extremo com sua já conhecida estabilidade. Dava até mesmo para andar com três rodas, como o presidente da França acabou descobrindo sem querer.

Mas foi na geração seguinte que a Citroën enlouqueceu de vez e começou a colocar nas lojas o que normalmente chamaríamos de carros conceito. O primeiro deles foi o GS. Lançado em 1970 para competir com o Fiat 128 (que não é exatamente o carro mais italiano do mundo, em termos de estilo), o Ford Escort Mk1, o Renault 6 e o Opel Kadett (o nosso Chevette tubarão), o GS trazia soluções de design e mecânica inéditas para sua categoria em sua época.

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Veja por exemplo os faróis poligonais. Eles são uma tendência atual, nascida após a era das curvas suaves, do tipo que você encontra nos Audi, Hyundai e Honda. A traseira Kamm demonstra uma preocupação com a aerodinâmica em uma época na qual o automobilismo estava apenas começando a adotar as asas como padrão. E ele ainda tinha a clássica suspensão hidráulica ajustável da Citroën e freios a disco nas quatro rodas. Olhe para este carro e pense no Chevette. Era isso o que você faria na hora de escolher um carro novo na França de 1974.

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Por dentro ele era ainda mais avançado: não havia um único instrumento convencional no carro. O conta giros tinha forma de paralelogramo com cantos arredondados, o velocímetro exibia a velocidade em um cilindro que girava em seu eixo por trás de uma lente que ampliava os números. O volante tinha um único raio e seu cubo ficava escondido dentro do painel, enquanto o tambor de ignição se encaixava sob a coluna de direção. Onde normalmente encontramos o contato da ignição, no GS havia um… acendedor de cigarros!

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Por alguma razão a Citroën achou que seria uma boa ideia trocar o rádio de lugar com o freio de mão e, como disse Anísio Campos certa vez, os franceses fazem o que bem entendem e não dão explicação para ninguém. Pois bem… eles fizeram e o GS tem o freio de mão no painel: aquela barra à direita do velocímetro é uma alça que aciona o freio de mão ao ser puxada. E como ele ocupou o lugar do rádio, nada mais lógico que colocar o rádio no lugar do freio de mão. Repare bem imagem e você verá que nem mesmo as maçanetas escaparam da criatividade dos estilistas da Citroën na época.

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Naquele mesmo ano a Citroën lançou seu primeiro — e até hoje único — grã-turismo: o Citroën SM. O carro também tinha aquele visual de conceito que foi direto para a linha de produção. Sua dianteira integrava os faróis com uma cobertura plástica onde normalmente haveria uma grade para o radiador. Ali ficava a placa de registro do carro. As janelas laterais também eram poligonais como os faróis do GS, ele também tinha uma traseira Kamm nada sutil para lidar melhor com o vento, e suas rodas traseiras ficavam ainda mais cobertas que as do DS e GS.

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Por dentro ele não era tão excêntrico, mas também se diferenciava dos carros da época. Os instrumentos são elípticos em vez de circulares, o volante tem um só raio como os demais Citroën e seu trambulador não tem uma coifa, mas uma cobertura metálica que jamais voltou a ser usada em outro carro.

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Mas bizarro mesmo era seu pedal de freio. Ou melhor: o acionamento do freio, que não usava um pedal, mas um botão que, dependendo da força aplicada sobre ele, variava a quantidade de fluido deslocado para as pinças. Soa estranho, mas o foie gras e o acento circunflexo na letra i (î) estão aí para mostrar que os franceses não estão nem aí para o que os outros pensam mesmo.

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Depois do SM a Citröen finalmente substituiu o DS após duas décadas de estrada. E ele era bem mais conceitual que o GS e o SM. Na verdade, o lado de fora era praticamente uma versão 125% do GS…

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Mas por dentro, o quadro de instrumentos destacado dava um ar futurista, reforçado pelos “pods” que substituíram as tradicionais hastes na coluna de direção e pela superfície limpa na parte superior do painel e nos paineis das portas.

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O quadro de instrumentos também usava mostradores com cilindros expostos por trás de uma lente, mas aqui para o velocímetro e o conta-giros. Como no GS, a Citroën achou que encher o painel de coisas não ficaria muito legal, e por isso deslocou os comandos da ventilação no console central (na verdade os comandos no console mantêm limpo o visual do painel). Uma simples maçaneta para abrir as portas também seria convencional demais, então eles usaram uma alavanca tipo gatilho.

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O encosto de cabeça também não poderia ser convencional: o ajuste é feito com almofadas destacadas e presas por botões de pressão.

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Em 1978 veio o Citroën Visa, que entendeu melhor que muitos o design dos anos 1980 e foi às ruas desse jeito:

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Confuso sobre o quadro de instrumentos e os comandos dos faróis, setas, limpador do para-brisa e afins? Veja mais de perto:

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Nunca é muito prudente passar o braço por dentro do volante, mas a Citroën não deu a mínima para isso e encheu o acabamento do cubo do volante de botões indecifráveis. O cilindro esquisito à esquerda controla faróis, piscas e a velocidade do limpador do para-brisa. O “dock” no lado direito tem os controles da ventilação. E você achando que os pods da primeira geração do Uno é que eram estilosos.

Este arranjo de comandos no cilindro foi repetido mais tarde na atualização do GS para os anos 1980 em dose dupla:

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O “pod” cilíndrico da direita concentra as luzes auxiliares e os comandos do desembaçador traseiro e lavador dos vidros. Mas a melhor parte é o sistema de check control com o diagrama do carro ligado às luzes para identificar onde está o problema.

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Quando o GS saiu de linha foi a vez do BX assumir seu lugar. O visual de conceito novamente predominava o estilo externo, bem como o tradicional para-lama cobrindo parte da roda traseira, em uma releitura oitentista do visual clássico dos Citroën.

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O interior também recebeu uma releitura de estilo, com novos pods e um quadro de instrumentos que pareciam ter saído da mesma fábrica (e usado o mesmo plástico) dos computadores MSX da época — especialmente na versão de dois tons (aqui mostrada com o painel analógico).

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No final dos anos 1980, quando o BX foi reestilizado para sobreviver à virada da década, a Citroën ainda lançou o XM, sucessor do CX que, novamente, tinha uma releitura moderna do visual clássico da Citroën, porém com um interior mais sóbrio, combinando linhas retas e elegantes ao cockpit futurista, mas somente na primeira fase do modelo.

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Ao ser reestilizado, o XM (e o BX) ganhou um volante de quatro raios e um quadro de instrumentos e painel mais tradicionais. Foi o começo do fim da loucura estética da Citroën, cada vez mais diluída e substituída por elementos convencionais que soam como uma releitura francesa do design germânico. Deu certo com os croissants, mas não com os Citroën.